SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Um mosaico de pequenos retângulos acinzentados, os telhados de centenas de casas precárias, forma um bloco sinuoso na parte superior da imagem. Esse corpo de concreto, insípido e ameaçador, parece prestes a avançar sobre a fatia inferior da foto, um trecho denso de mata atlântica na serra da Cantareira. O nome da localidade, na zona norte de São Paulo, talvez seja um prenúncio: favela do Futuro.

Esse embate entre as construções irregulares e a natureza na imagem, feita em 2014 por Danilo Verpa, fotógrafo do jornal Folha de S;Paulo, e centenas de outras expressões de tensão na vida paulistana estão presentes no Festival de Fotografia de São Paulo (FFSP), que começa neste sábado (27), com programação gratuita.

A primeira edição do evento não tem um mote específico, mas as contradições urbanas, especialmente no caso da capital paulista, se impuseram como tema recorrente, diz o curador João Kulcsár, idealizador do festival.

São pelo menos 35 exposições espalhadas pela cidade. O núcleo principal é a Unibes Cultural, que recebe quatro mostras, além de feira de fotografia, lançamentos de fotolivros, palestras e oficinas –essas atividades acontecem apenas neste final de semana, dias 27 e 28, diferentemente das exposições, em cartaz por um mês.

Entre as instituições ligadas ao evento, estão Sesc, Senac, Instituto Moreira Salles e MIS, o Museu da Imagem e do Som.

O festival se estende dos espaços que fazem parte da história da fotografia brasileira, como o Foto Cine Clube Bandeirantes, na rua Augusta, a galerias fora do tradicional eixo cultural da cidade, como a Sérgio Silva, no Jardim Monte Azul, e a Beco Visceral, em Paraisópolis. A Folha de S;Paulo é uma das parceiras do FFSP.

Além dessas fricções do cotidiano urbano, o festival contempla uma diversidade de fotógrafos, temas e linguagens, de acordo com Kulcsár, que deu aulas no Senac por mais de 30 anos e foi professor visitante da Universidade Harvard, nos Estados Unidos, por conta de seu projeto de alfabetização visual.

Embora mais dedicado à produção brasileira, o curador organizou exposições relevantes de mestres internacionais, como “Henri Cartier-Bresson, Primeiras Fotografias”, realizada em 2017 no Centro Cultural Fiesp, outro parceiro do FFSP.

Inspirado no festival de Arles, na França, uma das mais antigas iniciativas dedicadas à fotografia no mundo, Kulcsár começou a organizar em 2018 uma série de mostras em Paranapiacaba, vila histórica localizada em Santo André, na Grande São Paulo. Esse festival ganhou fôlego nos últimos anos e deu a ele a segurança necessária para um passo maior, o evento agora na capital paulista.

O objetivo do curador é que o FFSP passe a fazer parte do calendário cultural da cidade, como acontece, por exemplo, com a Mostra Internacional de Cinema e a MITsp, a Mostra Internacional de Teatro de São Paulo.

Entre os pontos altos da programação, está “Cidade Revelada”, na Unibes, com 25 imagens do acervo da Folha de S;Paulo, um percurso que vai da década de 1950 até hoje. Esses registros históricos integram o projeto Fotografia Paulistana, que inspirou o convite do curador. Disponível no site do jornal, nele é possível navegar por mais de 500 imagens de São Paulo, que podem ser filtradas por década, regiões da cidade ou temas.

“Essas fotos, muitas delas premiadas, mostram a São Paulo do descaso do poder público, da violência, do racismo ambiental. Mas apresentam também a cidade das manifestações democráticas”, afirma o curador.

Além de Danilo Verpa, há trabalhos de fotógrafos como Marlene Bergamo, Fernando Santos, Jorge Araújo, Juca Varella e Eduardo Anizelli. No mesmo espaço, serão projetadas 103 fotos selecionadas por Otavio Valle, editor de fotografia do jornal, contemplando o arquivo produzido ao longo de 103 anos da Folha de S;Paulo, completados em fevereiro.

A iniciativa se soma à parceria da Folha de S;Paulo com o Google Arts & Culture, onde é possível navegar gratuitamente por mais de 10 mil fotografias. Em novembro do ano passado, foi a primeira vez que o acervo de um jornal em circulação foi disponibilizado na plataforma.

Kulcsár chama a atenção ainda para “um registro impressionante das fiações elétricas clandestinas, os chamados ‘gatos’, no Jardim Pantanal, na zona leste. É uma foto de 2001 do João Wainer, que mostra essa ligação da informalidade com a precariedade”.

Um dos mais premiados fotojornalistas da imprensa brasileira, Lalo de Almeida tem três imagens em “Cidade Revelada”, entre elas, uma vista área do cemitério da Vila Formosa com covas abertas para receber vítimas da Covid-19.

“Essa série do cemitério foi uma forma de me reconectar com a fotografia na cidade porque a maior parte do meu trabalho nos últimos anos tem sido feita fora de São Paulo [especialmente Amazônia e Pantanal]. Foi o momento de sair para fotografar essa situação inusitada de uma cidade-fantasma”, lembra Almeida.

De acordo com ele, “ao se voltar para um intervalo de tempo tão longo, a exposição nos faz refletir sobre a São Paulo de onde saímos e os rumos que ela está tomando. Quais são os caminhos que a gente quer para a cidade?”

Questionamentos como esse aparecem também em “Cidades (In)visíveis”, exposição inspirada no livro “As Cidades Invisíveis”, do italiano Italo Calvino. Também na Unibes, exibe imagens feitas por dois deficientes visuais, a educadora Ana Claudia Domingues e o ator e cantor Edgar Jacques, que nos permitem ver aspectos muitas vezes ignorados em pontos históricos paulistanos.

Kulcsár, aliás, se diz um entusiasta de uma “curadoria ativista”, determinada a abrir espaços para a população periférica, o público LGBTQIA+ e as pessoas com deficiência, entre outros grupos que só nos últimos anos têm sido incorporados aos circuitos da produção fotográfica no Brasil.

Em “São Paulo em Três Tempos”, que abre em 14 de maio no Senac Lapa Scipião, a cidade é mais uma vez vista sob diferentes perspectivas. Será oportunidade para conhecer um pouco do rigor formal de Cristiano Mascaro, um especialista na arquitetura paulistana; o fotojornalismo voltado a temas sociais de Nair Benedicto; e a série “Noturnos”, de Cássio Vasconcelos, feita com Polaroid.

Entre os convidados internacionais da FFSP, está a italiana Elena Givone, que já publicou seus trabalhos em jornais como o francês Le Monde e o italiano Corriere della Sera. Ela traz “Sonhos da minha Lanterna Mágica”, exposição que reúne registros da infância em países pobres, como o Mali, e nações em situações de conflito, como a Síria.

Maria Ribeiro, que tem se dedicado a uma produção de cunho feminista, e Edgar Kanaykõ, do povo indígena Xakriabá, estão entre os convidados para as palestras, que acontecem neste primeiro final de semana. Karime Xavier, fotógrafa da Folha de S;Paulo, também vai falar com o público.

“Um festival como esse é a oportunidade para celebrar novos fotógrafos e visões”, afirma Xavier. “As pessoas vão a eventos assim com a alma aberta para ver fotos e trocar contribuições. Essa experiência sempre muda algo nelas, esse é o poder da fotografia.”