SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Ferramentas de reconhecimento facial são incapazes de distinguir entre gêmeos univitelinos –os chamados gêmeos idênticos, que são originários de um único óvulo fecundado e, por isso, têm o mesmo código genético.

A falha acontece porque o algoritmo de identificação se baseia em medidas da face, como distância entre os olhos ou entre o nariz e o lábio superior.

De acordo com a diretora para Brasil da startup de validação de identidade Incode, Viviane Sales, as diferenças entre os rostos de irmãos gêmeos ficam na margem de erro da tecnologia de identificação.

O reconhecimento dos traços, assim como todo processo de inteligência artificial, é um cálculo probabilístico e sempre vai envolver um erro. Além disso, é importante haver uma margem de erro para o sistema não se tornar incômodo por ser exigente demais.

Com feições muito semelhantes, gêmeos idènticos conseguem acessar iPhones e contas bancárias um do outro sem maiores dificuldades. Mas o problema vai além de bisbilhotices nos assuntos do irmão.

Em aplicativos que usam a biometria facial como chave de registro, quando um gêmeo está cadastrado, o segundo pode ser impedido de se registrar. Isso porque o sistema pode acusar que os dados cadastrais já estão sob uso de outra pessoa.

O exemplo mais citado é a conta na corretora de criptomoedas Binance. A página do Reclame Aqui da empresa reúne 11 reclamações de gêmeos impedidos de movimentar seu dinheiro após falha do algoritmo de identificação da empresa.

O youtuber Renan Mizobe Massi enfrentou esse problema ao tentar sacar valores que tinha em sua carteira da Binance. O sistema o confundiu com seu gêmeo idêntico Matheus Mizobe Massi e não permitiu a transação.

O aplicativo, então, pediu um vídeo dos gêmeos juntos, cada um com seu documento, para provar que eram pessoas diferentes. A autenticação levou um dia dia até ser confirmada.

Mas há situações em que os gêmeos podem estar distantes e, por isso, sem condições para gravar o vídeo, como mostram as queixas no Reclame Aqui.

Há também relatos de pessoas que ficaram esperando autenticação por mais de uma semana sem conseguir confirmar a autenticação e, por consequência, sem acesso à própria conta.

A Binance afirma que adota sistemas de identificação de identidade por motivos de compliance e, por isso, pede documento com foto, uma selfie e prova de vida.

“Nossos processos e tecnologias buscam detectar quaisquer documentos falsificados, tentativas fraudulentas de verificação de rosto, comprovante de endereço falso e golpes relacionados a esses tópicos, fazendo uso de Big Data e conhecimento especializado, além de inteligência artificial de ponta”, diz a empresa em nota.

Para resolver a confusão entre rostos semelhantes, a Binance diz ter trâmites que permitem a comprovação das identidades sem comprometer a segurança, como a videochamada com as partes interessadas.

Os irmãos, que produzem conteúdo com dicas financeiras, dizem ter aberto contas em diversos bancos brasileiros. “O problema maior foi esse com a Binance”, diz Matheus.

Instituições financeiras consultadas pela reportagem dizem cruzar as informações de biometria facial com geolocalização, IP de acesso (código único atrelado à cada conexão de internet) e outros dados para diferenciar os gêmeos.

Viviane Sales, da Incode, diz que sua empresa hoje já usa modelos capazes de “perceber expressões faciais e trejeitos que mudam de pessoa a pessoa, mesmo entre gêmeos”. Mas a adoção desses modelos, mais custosos por serem tecnologia de ponta, ainda não está consolidada.

Os problemas vão além de apps bancários, uma vez que nem todo negócio tem a equipe de tecnologia da dimensão de um banco.

As gêmeas Letícia e Mariana Rocha que moram no mesmo apartamento com identificação facial na portaria tiveram dificuldades para se registrar no condomínio em que moram.

Apenas Mariana conseguiu se cadastrar e Letícia entra nas dependências do prédio reconhecida como se fosse a irmã.

“Nos bancos de dados privados em que houve esse problema, uma simplesmente não conseguiu se cadastrar”, diz Letícia.

Segundo ela, o reconhecimento facial também não funciona para elas em apps do gov.br.

“Recentemente, não tive problema, mas é principalmente porque não cadastrei biometria facial em nada”, diz. “Não sei como vai ser quando eu for renovar minha CNH por exemplo”, acrescenta. A Senatran (Secretaria Nacional de Trânsito) passou recentemente a usar biometria facial para validar a carteira de motorista.

Em resposta à reportagem sob a adoção de reconhecimento facial como padrão ouro de segurança no sistema gov.br, o Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos diz que usa a base de dados da Justiça Eleitoral como referência em seu sistema de identificação de rostos.

Além disso, oferece alternativas de acesso a quem tem problemas com essa via, como a autenticação pelo QR Code da identidade.

“Todos os que tiverem problema e não consigam resolvê-lo podem usar o chat do aplicativo do gov.br, para ter atendimento de um servidor do Ministério de Gestão e da Inovação em Serviços Públicos”, diz a pasta em nota.

Segundo Sales, uma tecnologia que pode ter melhores resultados que o reconhecimento facial é o uso das digitais, porque usa mais pontos de referência.

O reconhecimento de voz também diferencia irmãos gêmeos idênticos, mas a tecnologia ainda é pouco adotada no país, de acordo com a empresa do setor Minds Digital.

Há gêmeos que levam a situação na brincadeira, pela confiança mútua. As gêmeas Fernanda e Vanessa comemoram que conseguem fazer transferências em nome uma da outra e acessarem o iPhone da irmã.

A Apple deixou de oferecer a opção de identificação por digital desde que adicionou o mecanismo de reconhecimento facial Apple ID no iPhone 13. Procurada, a fabricante de eletrônicos disse que não vai comentar.

Os aparelhos da Samsung ainda oferecem a opção da digital.

Nem todo gêmeo, contudo, goza de confiança do irmão, como mostra a história das herdeiras do jogo do bicho Shanna e Tamara Garcia. A série da Globoplay Vale o Escrito narra, entre outras coisas, as intrigas das duas, que hoje não se falam.

“Nós conhecemos outros gêmeos que não se dão tão bem assim e, nesses casos, esse problema da identificação pode ser um grande problema”, diz o youtuber Matheus.

Nos Estados Unidos, uma diretriz do Nist (Instituto Nacional de Normas e Tecnologias, em tradução livre) recomenda que as empresas que usam reconhecimento facial ofereçam alternativas à identificação do rosto para diferenciar gêmeos idênticos. O texto não é normativo, vale apenas como instrução.

No Brasil, o uso de reconhecimento facial não está regulamentado, o que pode mudar caso o marco regulatório da inteligência artificial, em tramitação no Senado, seja aprovado.