Ao longo de um janeiro que ficou marcado pelo acirramento da tensão entre Rússia e Ucrânia, pela guerra de palavras entre EUA e China a respeito de Taiwan e pelos inesperados problemas no Cazaquistão, a Coreia do Norte se inseriu nesse rol de crises ao realizar sete testes de mísseis em questão de semanas — no último deles, no dia 30 de janeiro, foi lançado um Hwasong-12, um míssil balístico com capacidade de atingir alvos a até 6 mil quilômetros de distância, o que incluiria o território americano de Guam, no Oceano Pacífico.
Apesar das primeiras análises ocidentais apontarem que os lançamentos seriam uma mensagem para os EUA — afinal, as conversas de paz na Península Coreana estão estagnadas desde 2019 — há que se levar em conta os próprios cálculos internos e externos de Pyongyang, que vão além de simplesmente chamar a atenção de Joe Biden.
“Há razões muito mais plausíveis para a Coreia do Norte testar agora, como suas prioridades militares e implicações de política interna. A Coreia do Norte não quer só demonstrar seus avanços técnicos, mas também garantir que os sistemas funcionem”, afirmou ao GLOBO Michelle Kae, vice-diretora do projeto 38 North, ligado ao Centro Stimson, de Washington. “No campo doméstico, testar mísses é uma forma de demonstrar o cumprimento dos planos anunciados pelo governo no 8º Congresso do Partido [dos Trabalhadores da Coreia] , no ano passado, ainda mais com os problemas na economia ligados à pandemia”.
Em entrevsta à Reuters, Markus Garlauskas, pesquisador no centro de estudos Atlantic Council, afirma que a ideia de que Pyongyang dispara seus mísseis apenas para “chamar a atenção” é uma das ideias preconcebidas mais “frustrantes” sobre o país
“Os norte-coreanos não são crianças mimadas “fingindo”, tampouco seus mísseis são apenas ferramentas de propaganda. Os programas de armas são muito reais, eles estão realizando avanços reais muito mais rápido do que qualquer um imagina”, afirmou Markus.
Ao mesmo tempo, ele considera que o atual momento, com as grandes potências envolvidas em suas próprias crises e com a vizinha Coreia do Sul em meio a uma intensa campanha eleitoral, parece perfeito para a Coreia do Norte mostrar seu arsenal.
Mesmo com o isolamento autoimposto desde fevereiro de 2020 por causa da Covid-19 — ao lado de Turcomenistão, Palau e Nauru, a Coreia do Norte é um dos poucos lugares do mundo sem casos da doença — e a severa crise econômica, reconhecida pelo próprio Kim Jong-un, o país avançou de forma considerável em seu programa militar.
“No relatório do 8º Congresso do Partido, foram identificados sucessos e áreas prioritárias para o setor de defesa, inclundo “ogivas hipersônicas manobráveis”, “foguetes intercontinentais submarinos e terrestres”, “satélites de reconhecimento”, dentre outros itens. De certa forma, a Coreia do Norte já apresentou uma lista de tarefas de tecnologias nas quais está trabalhando no desenvolvmento ou modernzação”, aponta Michelle Kae.
Novas atividades
No começo de janeiro de 2022, a Coreia do Norte intensificou o ritmo de testes, com sete rodadas de lançamentos, incluindo mísseis de cruzeiro, hipersônicos, de curto alcance e, no movimento apontado como o mais preocupante em Seul e pelos EUA, o disparo de um míssil balístico de médio alcance, o Hwasong-12.De acordo com os governos da Coreia do Sul e do Japão, ele atingiu uma altitude de 2 mil quilômetros e viajou 800 quilômetros até pousar no mar.
O lançamento foi o maior desde 2017, e embora não tenha violado uma moratória autodeclarada de testes de mísseis balísticos intercontinentais, ele sugeriu que Pyongyang não aceitaria mais limites às suas atividades militares, especialmente por parte dos EUA.
Durante uma reunião do Politburo do regime, no dia 20 de janeiro, Kim Jong-un trouxe à mesa ações que vê como “ameaçadoras” por parte de Washington, como as manobras militares com a Coreia do Sul, realizadas ao mesmo tempo em que Pyongyang evitava testar suas armas de maior poder destrutivo.
“A política hostil e a ameaça militar dos EUA atingiram uma linha perigosa que não pode mais ser ignorada, apesar dos nossos sinceros esforços para manter uma linha geral de apaziguamento na Península Coreana desde a reunião em Cingapura [com Donald Trump, em 2018]”, dizia o texto da agência estatal KCNA, publicado naquele dia.
Neste cenário, Kim Jong-un sugeriu que poderia retomar seus testes de mísseis balísticos intercontinentais — alguns deles com capacidade de atingir o território dos EUA, como o Hwasong-15 — e mesmo os testes nucleares. A última detonação ocorreu no dia 3 de setembro de 2017.
Mensagem interna
Mais do que ligada a um suposto desejo de retomar o diálogo com os EUA, revertendo a estagnação vista desde o fracasso da última reunião entre Kim e Trump, em 2019, a postura agressiva sugere que a Coreia do Norte quer que seus avanços técnicos sejam reconhecidos, assim como o direito de desenvolver suas armas.
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O país é alvo de uma série de sanções internacionais, virtualmente bloqueando o comércio de sua economia com o mundo, mas mesmo assim entrou para o “clube” de países com armas nucleares, com capacidade de usá-las e nem um pouco disposto a abandoná-las.
“A Coreia do Norte enfatizou, com frequência, que tem o direito de desenvolver e testar armas, como qualquer país soberano”, afirmou à Reuters Rachel Minyoung Lee, também pesquisadora do Centro Stimson.
Para legitimar essa posição, houve também uma mudança na imprensa estatal. O lançamento do Hwasong-12, que foi noticiado com destaque pelo mundo, não foi mencionado na primeira página do Rodong Sinmun, principal jornal do país. Para Minyoung Lee, esse é um sinal de que o regime busca “normalizar” as atividades militares.
“Pyongyang parece ter percebido que, para que suas ações não pareçam diferentes das realizadas por outros países, precisa começar a tratar seus testes de armas como um assunto normal do governo, como é feito ao redor do mundo”, destaca a pesquisadora.
Ela afirma que mesmo em relação aos EUA, a demonstração de força dá a Pyongyang argumentos em uma eventual retomada das negociações, mesmo que isso não esteja no radar das autoridades locais neste momento.
Há um outro fator interno : a proximidade de datas comemorativas importantes para o regime. No dia 16 de fevereiro, será observado o aniversário de 80 anos do nascimento do pai de Kim Jong-un, Kim Jong-il (1994-2011),e, no dia 15 de abril, os 110 anos do aniversário do fundador do país, Kim Il-sung (1948-1994). Para analistas, projetar uma imagem de força antes de datas patrióticas, em um momento de severa crise econômica, ajudaria a firmar um sentimento de “orgulho nacional”.
Testes de mísseis em sete atos
5 de janeiro: Primeiro teste do ano, envolvendo um míssil “hipersônico”, que percorreu 700 km antes de atingir seu alvo, no Mar do Japão. O lançamento ocorreu no dia em que o presidente da Coreia do Sul, Moon Jae-in, inaugurava obras de uma ferrovia entre as duas Coreias.
11 de janeiro: Governo norte-coreano testou, com sucesso, uma “unidade planadora hipersônica”, que atingu um alvo a 1.000 km de distância. O teste foi o primeiro a ser acompanhado por Kim Jong-un desde 2020.
14 de janeiro: Depois de um novo pacote de sanções contra integrantes do governo norte-coreano, foram lançados dois mísseis balísticos de curto alcance. Os dos viajaram cerca de 430 km até cairem no mar, com altitude máxima de 36 km.
17 de janeiro: A quarta rodada de testes de mísseis também envolveu o lançamento de dois mísseis táticos de curto alcance. Segundo estimativas, os mísseis voaram cerca de 300 km, com uma altitude máxima de 50 km.
25 de janeiro: Dois mísseis de cruzeiro foram lançados da costa oriental do país — apesar de serem mais lentos, esse tipo de armamento possui grande precisão de ataque.
27 de janeiro: O lançamento aqui envolveu dois mísseis balísticos de curto alcance, que viajaram 190 km a uma altitude máxima de 20 km.
30 de janeiro: Foi lançado o míssil balístico Hwasong-12, no maior teste do tipo desde 2017. Ele voou por 800 km a até 2 mil km de altitude.