Com a ancestralidade e respeito à sustentabilidade, estilistas trilham um caminho em busca de fortalecimento e reconhecimento da contribuição indígena na moda. “A onça que nada para o outro lado do rio”, esse é o significado do nome da artista indígena amazônida We’e’na Tikuna.

Em alusão ao Dia dos Povos Indígenas, celebrado anualmente no Brasil no dia 19 de abril com o propósito de celebrar a diversidade das histórias e das culturas dos povos indígenas brasileiros, o portal Amazônia Press conversou a ativista sobre a sua história e trajetória como mulher indígena buscando visibilidade por meio da sua arte.

Nascida na Terra Indígena Tukuna Umariaçu no Amazonas, Alto Rio Solimões, We’e’ena Tikuna rompeu fronteiras se tornando pioneira na moda indígena contemporânea. Um dos principais símbolos dos povos indígenas no Brasil, conquistou notoriedade e é uma importante voz de resistência que ecoa por todo o mundo.

Estilista, cantora, artista plástica e ativista indígena, Weena Tikuna sempre busca ressaltar que a moda indígena é uma forma de preservar a cultura e as tradições dos povos indígenas. Em entrevista exclusiva ao portal Amazônia Press, ela falou sobre a influência de seus pais e das suas vivências para seguir nessas áreas.

“Desde pequena eu sempre vi os meus pais me capacitando. Na aldeia, a gente já nasce com conhecimentos gerais de proteção, do cuidar do irmão, cuidar da floresta, do plantio, da alimentação… sempre foi dessa forma a nossa criação, sempre muito conectada com a natureza, com as pessoas e sempre aprendemos a estar ali em em união dentro da nossa reserva indígena. A gente já nasce ativista desde o momento que a gente nasce indígena. Porque a gente vê os desafios muito grandes em ser indígena. A gente já nasce protegendo o nosso território, a gente já nasce com essa necessidade de manter viva a nossa tradição, a nossa língua e o nosso território. Todo indígena já nasce artista, porque a gente já vê os nossos pais, nossos irmãos e nossos avós nos pintando desde pequenos usando jenipapo, urucum e outras pinturas no nosso corpo como uma forma da nossa identificação”, declarou ao portal Amazônia Press.

Formada em Artes plásticas pelo Instituto Dirson Costa de Arte e Cultura do Amazonas é a própria We’e’na quem produz e confecciona. Primeira estilista indígena a desfilar em uma passarela com peças nativas e sustentáveis do próprio povo, We’e’na começou a pintar as próprias vestimentas em meados de 2015, quando se mudou para São Paulo, com o intuito de mostrar para as pessoas da universidade da onde dela veio.

We’e’na ressalta ainda que o povo costuma produzir as roupas com o tecido Tururi. uma fibra vegetal natural, resistente e flexível que aparece na forma de um saco fibroso que envolve os frutos da palmeira Ubuçu, bastante abundante nas várzeas da Amazônia brasileira.

“Como já falei, nós indígenas já nascemos artistas, então eu só aprimorei esse meu conhecimento em artes plásticas para adaptar nas minhas peças. Nós indígenas sempre produzimos as nossas próprias roupas. No povo Tikuna, principalmente, a gente sempre usou do tecido Tururi para fazer as nossas vestimentas e as nossas pinturas. Sempre mantivemos vivos através dos nossos desenhos. Então, comecei a produzir as pinturas corporais, com o sumo de jenipapo, depois passei para as minhas próprias roupas. Quando fui morar na cidade, me mudei para São Paulo, eu comecei a frequentar a universidade e dentro dela comecei a fazer minhas próprias roupas como uma forma de identificação”, frisou.

Complementou ainda: “As pessoas me perguntavam se eu era indígena, se eu era do Peru ou se eu era asiática e eu sempre tinha que justificar que eu sou indígena do Povo Tikuna. De uma forma eu queria mostrar para as pessoas da onde eu vim. Assim comecei a pintar as minhas roupas para o meu uso pessoal mesmo como uma forma de identificar quem eu sou. O grafismo para nós indígenas sempre se trata de uma identificação, tem grafismo que a gente pinta quando a gente está feliz ou quando estamos triste. Mas no meu povo o que mais nós usamos são as pinturas do rosto que é a identidade formação da nossa origem e dos nossos clãs. Tudo isso eu traduzo para as minhas roupas e assim começou a minha trajetória para entrar na moda”.

A artista indígena fez história, em 2019, ao tornar-se a primeira indígena a protagonizar um desfile de Moda no Brasil Eco Fashion Week, onde lançou as coleções Éware e No´e.

“Eu não consigo descrever o quanto foi importante para o movimento indígena essa abertura. Não fui eu, We’e’na Tikuna, que me tornei a primeira indígena a protagonizar um desfile, mas sim o meus ancestrais que clamaram naquele momento. Foi um momento de grande vitória em prol da nossa arte indígena e da nossa moda. Por muito tempo nós indígenas fomos tutelados, calados e nós nunca tivemos oportunidade de ocupar esses espaços porque nós eramos vistos como selvagens. Aquele momento, em 2019, foi de clamor e de mostrar para sociedade brasileira que nós não somos peças de museu, que a nossa história está viva, está presente e só faltava oportunidade de mostrar o nosso verdadeiro protagonismo. Lá lancei a coleção Éware, que quer dizer sagrado, e aquele momento foi um algo único onde a própria diretoria do Brasil Eco Fashion Week me contataram e disseram que foi a primeira vez que eles tinham uma indígena mostrando na passarela a sua moda ancestral. Eu fiquei muito honrada de poder fazer essa abertura. Isso abriu um leque, uma oportunidade, onde nós indígenas nunca tivemos espaços. No ano de 2019, a gente conseguiu mostrar a nossa história, quebrar os preconceitos e mostrar que nós indígenas somos capazes de ser os próprios protagonistas da nossa história”, ressaltou.

Em tempos de novos caminhos e plataformas, as redes sociais tem sido palco da criação de comunidades e novos aprendizados como uma plataforma de entretenimento. Além de ser uma artista multifacetada, We’e’na é considerada uma das maiores influenciadoras indígenas da atualidade.

“A rede social, para mim, é nada mais e nada menos que uma arma de poder muito forte. Eu me tornei uma influenciadora no momento em que eu comecei a falar da importância, das histórias, da resistência e da luta do meu povo para manter viva a nossa tradição e história. Apesar dos meus pais ter nos levado para estudar na capital Manaus, a gente nunca perdeu a nossa essência e a nossa identidade. Manaus foi a primeira comunidade urbana a criar uma comunidade indígena, uma criação dos meus tios e dos meus pais, para a gente não perder a nossa essência. É uma conexão que a gente tem com a natureza e eu me sinto muito honrada por mostrar essa interação. Hoje em dia a gente tenta explicar para sociedade que ainda não conhece a nossa história. São umas cenas contadas por terceiro, um indígena nunca era o seu próprio porta-voz e hoje nós temos indígenas atuantes No mercado. A internet é uma arma de poder que a gente usa para mostrar tudo o que acontece no nosso dia a dia”, explicou ao Amazônia Press.

Além disso, ela também comentou sobre os processos que os indígenas costumam passar para chegar em lugares de destaque.

“Nós costumamos dizer que temos três tipos de indígena: O aldeado, aquele que só está lá na aldeia e nunca veio pra cidade, aquele que mantém viva essa tradição e a sua cultura; o indígena que está na fase de inclusão, que está se capacitando, aprendendo a língua portuguesa para vir estudar em uma universidade, entrar no mercado de trabalho e escolher uma área específica no que almeja; e o indígena urbano, que é aquele que já saiu da aldeia, já passou pela fase da inclusão, já está dentro das universidade, hoje se torna advogado, professor… Eu passei por esse processo, eu nasci na aldeia Umariaçu, no município de Tabatinga, vim me capacitar em Manaus, depois fui para São Paulo fazer a faculdade e hoje mexo com a internet mostrando que nós indígenas não somos analfabetos. A nossa história é contínua, ela está viva, mantemos viva a nossa tradição e os nossos rituais. Ainda há muito que a gente falar sobre esse processo, a gente hoje a gente briga por esse espaço, para manter a importância de ter indígena na TV, nas novelas, nas revistas e até mesmo ser uma das comendadoras”.

We’e’na Tikuna já recebeu a medalha do mérito artístico e cultural pela Academia Brasileira de Arte e Cultura, Recebeu a Cruz do mérito Juscelino Kubitschek, do empreendedor, Prêmio Top Art pelo Instituto Cultural da Fraternidade Universal, recebeu a Medalha de mérito artístico Carlos Gomes, e recebeu a Cruz do mérito Acadêmico e profissional pela Câmera Brasileira de Cultura.

Além disso, também recebeu prêmios de destaque profissional, destacando-se como a “melhor artista plástica indígena do Brasil” pela Sociedade Brasileira de Educação e Integração na 1ª Coletiva de Artistas Indígenas do Amazonas – ano 2005, patrocinada pelo Banco da Amazônia, e já foi presidente Nacional das Mulheres Brasileiras Indígenas pela Libra, Liga das Mulheres Eleitoras.

Dentre tantos momentos marcantes em sua carreira, ela ainda classifica o momento do desfile, em 2019, como o que mais a marcou nessa trajetória.

“Foi o momento que eu mostrei para mim mesma e para o meu povo que nós somos capazes. Foi quando eu criei mais de 12 looks para desfile e eu nunca pensei na minha vida poder criar looks para modelos verdadeiros. Eu sempre usei os meus próprios irmãos como meus modelos, nunca haviam sido modelos profissionais. Foi um momento marcante da minha vida de abrir esse leque no mundo fashion. Eu me emocionei bastante, chorei bastante e não consegui nem expressar a alegria que estava sentindo naquele momento. Foi tudo muito lindo mesmo. Hoje, ser reconhecida por esse trabalho de mostrar que o indígena ele tem a conexão não somente com a natureza, mas também com o mundo atual. Eu me sinto assim feliz, mas ainda sinto falta da gente ter mais espaço nesses lugares, que ainda são muito fechados para nós indígenas”, contou.

Após o desfile no Brasil Eco Fashion Week, em São Paulo, a artesã notou que não havia moda com características indígenas e, principalmente, produzidas por indígenas. Com o intuito de incentivar a representatividade e como sinônimo de resistência, nesse momento, ela teve a ideia de levar a história do nosso povo de forma lúdica para as crianças.

“Depois do desfile veio as criações das minhas bonecas e não parei mais… vieram o programas de TV, palestras, festivais… então são inúmeros momentos que marcaram a minha vida. As bonecas nasceram de uma forma educativa, de educar não somente o pensamento dos pais, das mães, mas também da própria criança. Como palestrante indígena eu sofri racismo e preconceito dentro da universidade e eu vi necessidade, através das criações da minhas roupas de uma identificação e depois dessa identificação das bonecas. Costumo dizer que ninguém nasce odiando a pessoa pela cor, pela religião ou pela forma de expressar, a gente aprende a odiar e eu criei as boneca para chegar nas mães e nas crianças de uma forma que ela possam estar conectadas diretamente com a nossa cultura, com a nossa ancestralidade e com o nosso povo, porque eu nunca me vi identificada em nenhuma loja até hoje, nessas lojas não tem referência pra minha filha que é uma criança. Então foi assim que nasceu a criação das bonecas”, disse.

O Dia dos Povos Indígenas é uma data significativa por celebrar a diversidade cultural dos povos indígenas do Brasil, além de ser uma oportunidade de retirar o apagamento que existe das histórias e culturas indígenas. A data também é um momento para que a população tenha maior contato com a cultura indígena, com o objetivo de quebrar preconceitos e dando oportunidade de ampliar seu conhecimento sobre os indígenas, suas histórias e suas culturas.

Ao portal Amazônia Press, We’e’na falou um pouco sobre a importância e a necessidade de valorizar os povos originários não somente nessa data alusiva.

“É muito importante a gente ensinar os nossos filhos q importância dos povos indígenas. Infelizmente, com essa data, nós indígenas somos lembrados apenas no mês de abril. Só que, como eu falei antes, nossa luta é contínua. Falar da importância dos povos indígenas é falar de vidas, de pessoas, da nossa luta e a nossa luta não é somente no dia 19 de abril que se comemora a nossa vivência. Quero deixar aqui bem claro a importância de celebrar essa luta para nós, que é uma luta de resistência. Essa data é uma luta que a gente mostra nossos direitos, que mostramos que nós existimos, o nosso valor, que ainda existimos e mantemos vivas a nossa língua e a nossa história apesar das nossas autoridades não serem muito a favor de manter toda a nossa floresta em pé, não demarcando nossos territórios e por isso eu digo que nesse momento é o momento que a gente ecoa nossa voz não somente para a realidade de algumas comunidades, mas sim a realidade de todas as comunidades indígenas. É o momento da gente mostrar a nossa luta e gritar para a sociedade que estamos aqui resistindo e vamos resistir até o fim. Somos estrangeiros na nossa própria terra, ainda sofremos racismo e preconceito, por isso uso as minhas redes sociais para mostrar para a sociedade que nós indígenas somos sim protagonistas da nossa própria história. Por isso eu digo, 19 de abril não é Dia dos Povos Indígenas, mas sim da luta indígena de conscientizar a população brasileira que nós não somos peças de museu e que a nossa história está viva para sempre”, concluiu.