KIEV, UCRÂNIA (FOLHAPRESS) – “Meu irmão está lutando em Zaporíjia”, suspira Valentina, de 58 anos, enquanto despeja uma colherada de batatas em um recipiente. “É lá que está meu sobrinho”, comenta a mulher mais velha trabalhando ao seu lado. A cidade é um dos fronts de batalha mais violentos da Ucrânia.

As duas fazem parte da organização Borsch for Ukraine, voluntariado de pessoas que decidiram se juntar para cozinhar e enviar comida pronta para os soldados do país. Tudo começou de forma modesta, dentro de uma casa de família. Hoje, preparam até 2.000 refeições por dia.

“É difícil ficar sentada em casa sozinha com seus pensamentos”, diz Valentina. “Então nós viemos para cá e motivamos umas às outras, isso nos ajuda a lidar com o estresse. Nós nos sentimos com um propósito, ajudando as pessoas mais importantes do país.”

A comunidade, como um todo, é uma rede de milhares de voluntários, incluindo os doadores de alimentos (pouca coisa ali é comprada diretamente no mercado) e os responsáveis por logística e transporte. Na cozinha apertada que a Folha de S.Paulo visitou na manhã desta quarta (17) em Kiev, se revezam cerca de 30 pessoas, quase todas mulheres mais velhas.

Ali elas preparavam, em pacotes de plástico do tamanho de uma mão espalmada, uma refeição seca que daria para até seis pessoas. O principal ingrediente é pepino ressecado: as cozinheiras recebem de fazendeiros potes de picles em lata, que espremem, picam e secam durante um dia inteiro.

Enfileiradas em uma mesa de cerca de dois metros, juntam o pepino com aveia, batata, cenoura, sal e um pouco de carne de boi ou frango. Cada mulher insere um ingrediente e passa para a próxima, até a porção estar completa, com uma mistura de temperos ao final.

“É um prato que tem bastante demanda, porque muitos soldados associam à sua casa”, afirma Irina, de 69 anos, apontando para uma parede coalhada de papéis de cartas de agradecimento enviadas a elas do front.

Para comer, a recomendação é adicionar dois litros de água quente para servir seis pessoas —os soldados são munidos em suas guarnições com velas impermeáveis para cozinhar. “Mas precisam tomar cuidado para não ferver a água. Você não quer fazer fumaça, afinal os russos usam drones que detectam isso facilmente”, diz Valentina.

Apesar das limitações, o cardápio é vasto. As ucranianas preparam 15 tipos de sopas diferentes, quatro delas vegetarianas, e também enviam itens como cereais, mel, vitaminas e frutas secas.

“Nós começamos fazendo só borsch e crescemos, queríamos diversificar”, afirma Anna, de 53 anos, que coordena a operação de entrega das refeições —as mulheres costumam trabalhar nesse processo de embalagem de terça a quinta, e o recorde foram 2.700 pacotinhos de borsch num dia só.

Para quem não sabe, essa é a comida símbolo da Ucrânia, registrada em nome do país como patrimônio cultural na Unesco. É uma sopa grossa feita com legumes —a beterraba costuma predominar— misturados com creme azedo e alguma carne.

Pode ser comido como entrada ou prato principal, mas não é nada incomum que os ucranianos tomem uma versão mais leve no café da manhã.

Não por acaso os pratos de borsch seco foram a pedra inaugural e a opção mais popular da cozinha voluntária. Anna conta que as refeições são enviadas para todos os fronts que se registrarem, para as equipes médicas que evacuam feridos e até para militares que vierem bater, eles mesmos, à porta delas.

“Só tentamos manter o controle para que a comida não fique parada num depósito. Queremos que vá para quem realmente precisa comer”, diz ela.

Ainda que seja uma produção em grande escala —vizinha de um depósito em que se empilham caixas e mais caixas de suprimentos, exalando um cheiro forte de conserva—, o clima é familiar. Há mães cozinhando para filhos, irmãs para irmãos, tias para sobrinhos: todas solidárias, a maioria com saudade.

A voluntária mais velha do grupo é Ludmila, de 86 anos, que tem o costume de deixar sempre uma caixa de biscoitinhos feitos por ela com um recado afetuoso, estimulando as tropas como se fossem todos seus afilhados.

“Começamos a preparar comida na casa de uma de nós”, comenta Anna, segurando uma dessas caixinhas. “Mas hoje é como se toda a Ucrânia estivesse aqui dentro.”

O jornalista viajou a convite do Ministério das Relações Exteriores do Reino Unido