ADIS ABEBA, ETIÓPIA (FOLHAPRESS) – A viagem do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) ao continente africano foi marcada por uma série de contratempos em agendas, que acabaram irritando o mandatário brasileiro.

Além disso, a passagem por Cairo (Egito) e Adis Abeba (Etiópia) terminou com a polêmica fala comparando a situação na Faixa de Gaza com o holocausto, que deu início a uma nova crise com Israel.

Lula concluiu no domingo (18) uma viagem de cinco dias à África, com passagens por Egito e Etiópia. A ação militar de Israel na Faixa de Gaza foi o tópico central da viagem, constando em todos seus discursos, além de ser tema da maioria de suas reuniões bilaterais.

O presidente manteve as suas duras críticas à “resposta desproporcional” de Israel, afirmando que o país tem “primazia em descumprir decisões da ONU”. Ou seja, manteve o tom e padrão de suas falas no Brasil.

No entanto, houve um cuidado para não avançar certos limites, para não retirar suas credenciais como um ator que busca influenciar as negociações para um cessar-fogo, tanto que a todo momento ele também condenou os atos do Hamas. Até que tocou no ponto mais sensível para o povo judeu.

“Sabe, o que está acontecendo na Faixa de Gaza com o povo palestino não existe em nenhum outro momento histórico. Aliás, existiu quando Hitler resolveu matar os judeus”, afirmou o presidente, que também usou os termos “genocídio” e “chacina”.

O tom da fala representou uma mudança de rumo em relação ao plano que vinha sendo trabalhado no Brasil para a viagem. Estava certo que Lula seria duro com Israel, mas com cuidados retóricos, mesmo em ambientes pró-Palestina.

Um auxiliar no Palácio do Planalto havia apontado que não poderia cruzar certos limites durante o discurso na Liga Árabe, porque a organização apresenta “nuances”. Egito e Qatar, por exemplo, são dois atores que estão envolvidos nas negociações para um cessar-fogo na Faixa de Gaza, em troca da liberação de reféns.

Além disso, a Arábia Saudita se aproximou de Israel em tempos recentes, além de ser um forte interlocutor dos Estados Unidos na região.

Auxiliares de Lula dão versões diferentes nos bastidores a respeito da fala sobre o holocausto. Enquanto uns apontam “deslize” do presidente, outros apontam que foi uma forma de trazer ainda mais para o debate internacional a situação na Faixa de Gaza, que já conta com 30 mil mortos, além de 9 mil desaparecidos sob os escombros.

Esses também argumentam que Lula não banalizou o holocausto, não reduziu a sua dimensão. Simplesmente elevou a classificação do que está acontecendo em Gaza. E que a fala, embora polêmica, está em linha com a posição do governo, tanto que subscreveu a iniciativa da África do Sul na CIJ (Corte Internacional de Justiça), que versou sobre genocídio.

Certo é que a fala de Lula sobre o holocausto pegou de surpresa alguns membros da sua equipe, inclusive da área internacional.

Também é lembrado o fato de que a declaração se deu após uma imersão de vários dias com interlocutores mais ligados ao lado árabe e pró-Palestina, que trouxe novos fatos e visões para o presidente. Ele teve uma longa reunião com o ditador egípcio Abdel Fattah al-Sisi, com o secretário-geral da Liga Árabe, Ahmed Aboul Gheit, e também se encontrou com o primeiro-ministro da Autoridade Palestina, Mohammad Shtayyeh.

Desse último, ouviu os relatos da tragédia no campo, que terminou com a frase: “Se isso não é genocídio, não sei o que é”.

Além da situação em Gaza, os principais objetivos de Lula no continente eram reconstruir pontos para comércio e exportação de serviços e angariar apoio e união em torno do chamado Sul Global e para as reformas das instituições financeiras mundiais – o que vem sendo uma tônica da presidência brasileira do G20.

O brasileiro foi muito aplaudido ao tocar nesses temas, em seu discurso na abertura da cúpula da União Africana, em particular ao defender o perdão da dívida dos países africanos com o FMI (Fundo Monetário Internacional). O objetivo é que o pagamento das parcelas e juros se transforme em investimentos para o desenvolvimento desses países.

Palavras e projetos de cooperação são bem recebidos pelos líderes africanos, mas todos são bem pragmáticos ao darem prioridade aos investimentos diretos e repasses de recursos. Vale destacar que o prédio da União Africana, onde Lula discursou, foi construído pela China.

Lula antecipou em um dia a sua ida do Egito para a Etiópia, para se encontrar com o primeiro-ministro Abiy Ahmed – ganhador do prêmio Nobel da Paz e agora acusado de genocídio contra rebeldes.

O restante de sua sexta-feira (16), no entanto, foi marcada por uma série de cancelamentos de reuniões que aconteceriam no hotel em que Lula estava hospedado. O presidente levou “bolo” de representantes de países como Nigéria e Quênia, além do presidente do Banco Africano de Desenvolvimento, que alegaram problemas logísticos.

Além disso, cancelou sua ida a evento da FAO, pois líderes africanos que também participariam foram convocados para uma reunião de emergência para tratar do conflito na República Democrática do Congo.

A equipe de Lula minimizou esses desencontros, afirmando que ele chegou mais cedo a Adis Abeba para o encontro com o primeiro-ministro etíope e que as demais agendas foram tentativas de “encaixe”.

No dia seguinte, houve o cancelamento do secretário-geral da ONU, António Guterres, que nem chegou a ir a Adis Abeba. E os atrasos da cúpula africana atropelaram a reunião bilateral que teria com Moçambique.

Auxiliares apontam que o presidente ficou irritado com a situação, pois esperava uma recepção diferente. Decidiu então não comparecer ao jantar promovido pelo primeiro-ministro etíope para os chefes de Estado que participaram da cúpula da União Africana.

A última manhã de Lula na capital da Etiópia, por outro lado, se mostrou o período mais proveitoso de reuniões bilaterais. Das três prioridades de agendas esboçadas ainda em Brasília, apenas o encontro com o presidente de Moçambique, Filipe Nyusi, não se confirmou.

O país é o maior devedor do Brasil no continente africano, com um débito de US$ 143 milhões. O governo Lula trabalha em um plano de renegociação da dívida dos países africanos.

Por outro lado, o presidente conseguiu se encontrar com os representantes dos outros dois países prioritários: Nigéria e Quênia. Com o primeiro, discutiram formas de “energizar” a relação e retomar o patamar de comércio, que chegou a US$ 10 bilhões por ano e agora está em um décimo disso.

A perna Adis Abeba da Etiópia então parecia completa, após os tropeços iniciais. E então veio a fala sobre o holocausto, e Lula embarcou de volta a Brasília trazendo uma crise diplomática.