SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Além do efeito de gastos públicos bilionários em 2022 e 2023, o salto real de 11,7% na massa de rendimentos do trabalho no ano passado, o maior desde o Plano Real, teve relação com a queda da participação dos lucros das empresas no PIB (Produto Interno Bruto) e do aumento do peso dos salários na economia.

Dados da Receita Federal mostram que a arrecadação do Imposto de Renda Pessoa Jurídica e da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido das empresas caiu 9% reais (descontada a inflação) no ano passado.

Foi no mesmo 2023 que a renda do trabalho subiu 11,7%, segundo cálculo do economista Marcos Hecksher, do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) com base na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua do IBGE.

Boa parte da alta dos rendimentos tem relação com a derrama de incentivos promovidos por Jair Bolsonaro (PL) na segunda metade de 2022 em sua tentativa de se reeleger. Depois, com a PEC da Transição, de R$ 145 bilhões, para que Luiz Inácio Lula da Silva (PT) pudesse gastar mais em 2023.

No ano passado, houve ainda aumento real no salário mínimo (de 4,1%, o maior desde 2012, segundo o Ipea), com impactos sobre benefícios sociais e aposentadorias; e a manutenção do Bolsa Família em R$ 600 ao mês —mesmo patamar desde julho de 2022.

Essas medidas tiveram efeitos multiplicadores nos salários, no emprego e no PIB, que cresceu 2,9% em 2023 e, principalmente, na renda do trabalho, que aumentou 11,7%.

Outro fator que contribuiu para o aumento da renda teria sido o crescimento da participação dos salários no PIB, em detrimento dos lucros brutos das empresas (o EOB, Excedente Operacional Bruto, como é chamado tecnicamente).

Segundo Samir Cury, pesquisador associado do Insper, a queda de 9% na arrecadação de impostos das empresas em 2023 é indicativo claro de que houve redução no lucro bruto empresarial.

Como o PIB cresceu 2,9% e a renda subiu 11,7%, entre as “perdedoras” estariam as empresas. Cury estima que, na prática, a divisão entre lucros brutos das companhias e a renda do trabalho estaria retornando a patamares pré-pandemia, da metade da década passada.

Entre 2015 e 2019, os salários e os rendimentos mistos (remuneração de autônomos que não pode ser identificada se proveniente do capital ou do trabalho) mantiveram participação no PIB (pela ótica da renda) entre 43,8% e 42,7%, segundo o Sistema de Contas Nacionais (SCN), do IBGE. No mesmo período, a participação do lucro bruto das empresas oscilou entre 32,1% e 32,8%.

A partir de 2020, os lucros brutos ganharam terreno no PIB, chegando a 37,4% em 2021 —alta de 4,6 pontos percentuais sobre 2019. Já a participação dos salários caiu para 38,8% —queda de 4 pontos.

Ainda não há dados oficiais do PIB pela ótica da renda do SCN sobre o que ocorreu em 2022 e 2023. Mas Cury estima que, para que a renda do trabalho tenha crescido 11,7% no ano passado, o lucro bruto das empresas pode ter caído cerca de 6,4%. Em 2022, a renda do trabalho também cresceu (6,6% reais), o que reforçaria a tendência de aumento da participação dos salários no PIB.

“Vamos ver uma recuperação de parte do terreno. Talvez a participação [dos salários no PIB] não volte aos quase 44% de 2015, mas será maior do que 40%”, prevê Cury.

O economista afirma que boa parte do aumento da renda do trabalho em 2023 teve relação com o forte aumento dos gastos públicos, e que seu crescimento contínuo não é sustentável do ponto de vista fiscal. Portanto, o aumento da participação da renda no PIB seria boa notícia.

Assim como Marcelo Neri, diretor da FGV Social, Cury acredita que, quando o IBGE divulgar a PnadC completa de 2023, em abril, a taxa de pobreza no Brasil a ser calculada a partir dos dados apresentará forte queda —levando-se em conta o aumento real significativo da renda do trabalho em 2023 (11,7%) e a elevação dos benefícios do Bolsa Família, entre outras transferências.

O outro lado da moeda de mais gastos estatais e salários impulsionando a renda e diminuindo a pobreza são a dificuldade do governo em ajustar as contas públicas e a piora no ambiente empresarial.

Isso torna sombrio o que pode vir à frente pois, sem resultados robustos no setor privado, caem a arrecadação (que paga as contas do governo) e o emprego (que melhora os rendimentos de quem trabalha). Neste contexto, como a renda se sustentaria?

Estudo do Cemec-Fipe (Centro de Estudos de Mercado de Capitais da Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas) com dados de 2023 mostra que o endividamento das empresas fechou o ano em 35,9% do PIB, nível próximo ao registrado na crise econômica de 2015, quando essa relação estava em 36,1%.

Já os índices de inadimplência empresarial divulgados pelo Banco Central crescem aceleradamente desde meados de 2022, assim como as recuperações judiciais.

Segundo o Cemec-Fipe, dados de empresas de todos os portes reunidos pelo Serasa mostram que os pedidos de recuperação judicial aumentaram 80,7% no último trimestre de 2023, na comparação com o mesmo período de 2022. Um contraponto é que o emprego começou forte em janeiro, com a criação de 180,4 mil vagas formais, acima do esperado.

Mas, com previsão de um PIB menor neste ano (1,78% pela pesquisa Focus, do BC) que o de 2023 (2,9%) e queda na popularidade, segundo pesquisas recentes, o governo Lula vem procurando alternativas para estimular a economia. Como antecipar, para abril e maio, as primeira e segunda parcelas do 13º salário de aposentados, pensionistas e demais beneficiários do INSS.

A iniciativa se soma à antecipação do pagamento, em fevereiro (e não julho), de R$ 30 bilhões em precatórios a serem pagos em 2024. Outra ideia é liberar parcela de 5% dos recursos da poupança depositados compulsoriamente no BC para injetar R$ 20 bilhões na Caixa Econômica Federal a fim de financiar a compra da casa própria.

Em solenidade recente no Planalto sobre o Programa de Aceleração do Crescimento, Lula afirmou: “Vamos ver como é que a gente pode utilizar mais dinheiro para fazer mais benefício para o povo. O que é importante vocês terem clareza é que ninguém ficará de fora”.

O risco da estratégia, apontado por muitos economistas, é o governo deteriorar mais as contas públicas e aumentar o endividamento estatal. Uma das maiores entre os emergentes, a relação dívida/PIB brasileira fechou 2023 em 74,3% —ante 71,7% um ano antes.

O dado é o principal indicador de solvência de um país. Quanto pior, mais juros são exigidos pelo mercado para financiar o governo, com impactos negativos no lucro das empresas e no crescimento.