SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – A falta de regras para orientar o comportamento das redes sociais no Brasil não é um problema do texto do Marco Civil da Internet, aprovado há dez anos, na visão da coordenadora do Comitê Gestor da Internet (CGI), Renata Mielli, 52.

Para ela, os advogados das grandes empresas de tecnologia se valem de interpretações indevidas para manter a irresponsabilidade de seus clientes.

Criado em 1995, o CGI é o fórum que define diretrizes para a internet no país. Seus membros são indicados pelo governo, como foi o caso de Mielli, e por associações que representam empresas, a comunidade científica e a sociedade civil.

Em entrevista à Folha de S.Paulo, via videoconferência, ela defende o avanço institucional garantido pela lei que definiu o acesso à internet como direito fundamental.

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Pergunta – Quais foram os principais avanços que a aprovação do Marco Civil da Internet dez anos atrás trouxe?

Renata Mielli – Além do que o Marco Civil traz como diretrizes para responsabilidades e direitos para os usuários da internet no Brasil, foi uma lei construída de uma forma muito particular: a primeira no Brasil construída com base em uma consulta pública à sociedade, com inúmeras audiências.

P. – E qual foi o resultado desse processo de diálogo?

R. M. – Primeiro, ficou garantido pelo Marco Civil que a internet é um direito fundamental e, portanto, o acesso à internet também deve ser garantido pelo Estado brasileiro. Outra coisa é a garantia da neutralidade da rede.

O Marco Civil da Internet escreveu em lei que as operadoras de telecomunicação não podem diferenciar, a partir de interesses comerciais, a entrega dos pacotes de dados para os usuários. Isso significa que não podem privilegiar o fluxo de dados de um conteúdo em detrimento de um outro conteúdo que é uma transação comercial.

Naquele momento também ficou claro o princípio da inimputabilidade dos intermediários, o artigo 19. Só são responsáveis pelo conteúdo de terceiros mediante ordem judicial, que nem sempre cumpriam naquela época.

P. – O que é um intermediário?

R. M. – Muitas coisas são intermediários na internet, o Universo Online [UOL], na posição de serviço de hospedagem de sites e blogs, é intermediário, já que não lida com o conteúdo. Apenas oferece um sistema de administração para uma empresa. Uma pessoa, para que possa ter seu site na internet, precisa que esse intermediário defina o que pode ou não estar no ar por uma decisão discricionária? Não.

Agora, se o UOL ou o serviço de hospedagem receber uma ordem judicial dizendo que aquele conteúdo precisa sair do ar, a empresa precisa cumprir com essa decisão judicial mesmo que não seja responsável. Isso trouxe segurança jurídica para o ambiente digital.

P. – Esse último ponto é alvo de discussão hoje, quando discutimos o antigo do texto do PL da fake news. O projeto falava do dever das plataformas de proteção dos usuários.

R. M. – A confusão está no conceito, porque redes sociais são aplicações de internet que vão além de simples intermediários. Não cabem na acepção da palavra do que está consignado no Marco Civil da Internet.

Essas empresas são gestoras de conteúdo, porque definem prioridades através de critérios próprios e algoritmos de impulsionamento —há uso de recurso econômico para impulsionar conteúdo. Fazem a curadoria do conteúdo. Na visão do CGI, é necessário olhar para este novo tipo de ator que existe em cima da camada da internet, que precisa ter outra forma de responsabilidade.

O artigo 19 do Marco Civil não perdeu a importância. O que gera problemas para nós são as novas aplicações de internet estarem fora do escopo do Marco Civil —hoje não há legislação para regulá-las. O Marco Civil foi feito para os problemas que tínhamos em 2014.

P. – Os advogados dessas redes sociais e as associações que representam essas empresas costumam argumentar que elas são intermediárias e não têm condição de fazer uma gestão do conteúdo circulante. Isso é uma diferença de concepção entre as duas partes?

R. M. – Isso é uma interpretação indevida do Marco Civil da Internet, porque essas plataformas não são intermediárias neutras. Essas plataformas são curadoras de conteúdo. Naquela época, isso não estava muito claro. O artigo 19 do Marco Civil não dá conta do tipo de serviço que essas empresas prestam.

Em resolução do CGI do ano passado, nós dizemos que temos acordo com a proposta que estava no PL 2.630 de que essas plataformas precisam ser responsáveis, se não solidariamente, subsidiariamente pelos conteúdos postados pelos terceiros.

P. – Agora, voltamos à estaca zero desse debate, quando [o presidente da Câmara] Arthur Lira mudou a relatoria do PL das Fake News.

R. M. – O Congresso Nacional precisa discutir qual será o rumo desse debate. Na ausência de clareza, o STF já agendou uma data para o ADI (ação direta de inconstitucionalidade) contra o artigo 19 [para 17 de maio] em busca de resposta. Caso o STF julgue o dispositivo inconstitucional, surge outro problema de insegurança jurídica.

P. – A falta de moderação de conteúdo impulsionado tem reflexo em questões além das eleitorais, como impulsionamento de fraude nessas plataformas, por exemplo.

R. M. – Na pandemia, que não eram questões eleitorais, foram conteúdos antivacina, de discurso de ódio, que podem levar a ameaças à integridade física das pessoas. Houve o caso da menina que se suicidou após publicação no Twitter [Jéssica Canedo]. Não era um tema eleitoral. As plataformas precisam ter algum grau de responsabilidade sobre esse tipo de conteúdo que circula no seu interior. Isso precisa ser resolvido com uma legislação específica.

P. – Por que essa legislação específica não é aprovada?

R. M. – Porque essas grandes plataformas são as maiores empresas em faturamento no mundo. Elas têm um lobby imenso junto ao Congresso Nacional. Tem aí escritórios com os melhores advogados do Brasil que interpretam as legislações existentes em seu benefício. Por isso que essa interpretação do Marco Civil é tão discutida. Porque essas empresas também apostam na interpretação em seu benefício de um artigo que não deveria beneficiar essas plataformas.

P. – No Brasil, as duas principais legislações para discutir regulação da internet são o PL das fake news e o marco regulatório da inteligência artificial. Falta uma discussão de uma lei de soberania digital e antimonopolista como foi a lei de mercados digitais na Europa agora?

R. M. – Na minha avaliação, o Brasil precisa enfrentar o debate mais relacionado à regulação econômica dessas plataformas porque isso é fundamental para que criemos um ambiente no Brasil onde haja a possibilidade de fomentar novos entrantes no mercado, que é muito fechado. Não só por isso, mas porque essas empresas prestam serviços no Brasil e não pagam impostos no país.

Agora, imagine que se já temos dificuldade para discutir uma lei que vai criar obrigações e regras para a prestação dos serviços das big techs, imagine para discutir uma regulação econômica. Mas é muito importante que nós tentemos avançar nessa perspectiva.

P. – O Marco Civil foi sancionado dez anos atrás durante o NET Mundial. Esse evento retorna este ano ao Brasil. O contexto mudou?

R. M. – O gatilho para a realização daquele encontro foi as revelações de Edward Snowden em torno da espionagem do governo americano. De lá para cá, o Marco Civil aprovado naquele momento buscou trazer a participação dos direitos individuais e de independência do Brasil. Nessa esteira, o país também conseguiu aprovar uma lei geral de proteção de dados pessoais e avançamos na garantia da privacidade. Agora, o objetivo principal é discutir como se dá a governança desse mundo digital hoje.

RAIO-X – RENATA MIELLI, 52

É coordenadora do Comitê Gestor da Internet desde 2023. Antes, coordenou o Centro de Estudos da Mídia Alternativa Barão de Itararé. Estuda o impacto emocional das redes sociais na vida das pessoas em doutorado na Escola de Comunicações e Artes da USP