Papa Francisco abençoa lideranças indígenas da Amazônia. Foto Mídia Vaticano

“Barça ou Barsak”.

Na língua wolof, falada por 80% do povo senegalês, esta expressão significa: “Barcelona ou Morte”.

E é este o grito de guerra proferido pelos migrantes senegaleses da cidade costeira de St Louis quando se lançam ao Oceano Atlântico em barcos superlotados para costear a África e tentar chegar a Barcelona, na Espanha. A viagem é precária, e muitos, efetivamente, não conseguem alcançar seu destino.

Por que se lançam na aventura? Porque St Louis, cidade listada em 2000 pela Unesco como “Patrimônio da Humanidade”, tem sido vítima do aumento do nível mar, consequência das mudanças climáticas. As casas da colônia de pesca são destruídas pelas águas salgadas. Os desabrigados são levados para o campo construído há 4 anos pelo governo. E hoje, já são mais de 3,2 mil pessoas vivendo em cabanas improvisadas e alimentando-se das doações.

Arouna Kandé, jovem senegalês que vive sob a proteção da ONG Maison de la Gare, em Saint Louis,  conta que já perdeu muitos amigos nessa travessia. Ele representa a Voz dos Pobres no documentário “A Carta”, lançado mundialmente no dia 3 de outubro e aqui no Brasil no início do mês, na sede da CNBB, em Brasília. O documentário é baseado na histórica encíclica “Laudato Si”, que o Papa Francisco lançou em 2015, convocando a uma reflexão global sobre o estilo de vida, a sociedade, e para uma forte ação política:

“Será realista esperar que quem está obcecado com a maximização dos lucros se detenha a considerar os efeitos ambientais que deixará às próximas gerações?”, pergunta o Sumo Pontífice, líder de uma religião que tem hoje  quase 1,3 bilhão de pessoas (quase a população da China).

O documentário, produzido pela equipe Off the Fence – a mesma do filme “Professor Polvo”, que ganhou um Oscar em 2021 – chega em bom momento. Os holofotes de ambientalistas estão voltados para o Egito, onde acontece a COP27, em que os chefes das nações são convocados a tomar providências urgentes contra o aumento de emissões de gases de efeito estufa que estão causando as mudanças no clima.

Mas o mercado de carbono ou a quantidade de partículas de carbono lançadas na atmosfera são apenas pano de fundo em “A Carta”. O foco do documentário são as vítimas das mudanças climáticas, os refugiados que, segundo a ONU, serão cerca de 1,2 milhões até 2050.

Jovem espera que água volte à torneira em um campo de refugiados em St Louis, no Senegal. A cidade vem sendo ameaçada pelo aumento no nível do mar. Foto Jean-François Fort/Hans Lucas via AFP
Jovem espera que água volte à torneira em um campo de refugiados em St Louis, no Senegal. A cidade vem sendo ameaçada pelo aumento no nível do mar. Foto Jean-François Fort/Hans Lucas via AFP

A estrutura do filme gira em torno de uma carta que foi enviada pelo Papa Francisco a quatro personagens simbólicos que refletem o impacto das mudanças climáticas sobre vidas. Trata-se de uma convocação para conversar com o Papa Francisco sobre o desafio que a humanidade tem enfrentado neste combate.

Os quatro protagonistas representam a Voz dos Pobres, a Voz da Juventude, a Voz da Vida Selvagem e a Voz dos Indígenas. Arouna Kandé, o jovem senegalês que narra a tragédia enfrentada pela sua cidade, representa os pobres no documentário.

“Em St Louis, onde moro, o mar está avançando, invadiu todas as casas e algumas pessoas têm que morar no mar. É por isto que estão pegando barcos para migrar para a Europa”, disse ele.

A câmera vai caminhando com Arouna pela sua cidade, mostrando as condições criticas em que sobrevivem as pessoas naquele litoral. Um artista plástico faz um desenho num muro, retratando o barco dos migrantes, com a expressão “Barça Barsak”.

“Os migrantes deveriam ficar aqui, em vez de se lançarem ao mar. Vou trazer meus amigos para que eles vejam este desenho”, disse Arouna.

A Voz dos Indígenas é representada por um cacique brasileiro, Dadá, da terra indígena Maró, na Amazônia. Ele contou como os que defendem a floresta são vítimas nas mãos de pessoas que usam a floresta apenas como fonte de lucro. E lembrou que as comunidades indígenas protegem 80% da biodiversidade do planeta.

Da Índia, a jovem Ridhima Pandey, de apenas 13 anos, foi escolhida para receber a carta do Papa por conta de seu ativismo ambiental. Na fala de Pandey, fica também visível que sua preocupação é com as vítimas dos eventos extremos além, naturalmente, da degradação ambiental.

Um casal de cientistas – Robin Martin e Greg Asner – que trabalha em Big Islands, no Hawai, foi escolhido para receber a missiva papal por sua atuação no sentido de criar tecnologias para obter informações sobre a vida no fundo do mar.

“Os recifes são como as florestas nos oceanos. Oferecem habitat, comida e proteção à vida costeira. Olhamos para a natureza como espécies, organismos que interagem onde um não sobrevive sem  o outro. Com as ondas de calor causadas pelas mudanças climáticas, já perdemos 25% dos nossos corais”, disseram eles.

Até 2050, se as coisas continuarem como estão, teremos perdido 90% dos recifes de corais de todo o mundo, informam Robin e Greg, representando a Voz da Vida Selvagem.

O Papa Francisco aparece aos 40 minutos de filme. Bem-humorado e gentil, ele se apresenta a cada um dos quatro protagonistas e se senta para dar seu recado. Enfatiza que respeita todas as religiões, exorta a solidariedade entre os povos, alerta para o grito de “basta!” que a natureza está dando a cada tormenta e diz que está na hora de agirmos.

“É como um coro, e nós temos que cantar todos juntos. Não descartamos ninguém. Se alguma política descartar, nós a descartaremos. Cada um tem que arranjar sua forma de fazer isto”, disse Francisco. A Voz do Papa.

A cena mais comovente do documentário – que pode ser assistido aqui –  acontece pouco antes do fim, quando o grupo é levado a Assis, cidade de São Francisco de Assis, santo inspirador do Papa. Arouna Kandé, de longe o personagem mais carismático, está visitando com os colegas de cena o monumento ao santo quando recebe um telefonema de um amigo de sua cidade. A câmera grava o momento em que o jovem senegalês fica sabendo que a água do mar destruíra parte da ONG onde vive.

“As crianças da creche ficaram sem ter onde dormir”, avisam.

Kandé recebe a solidariedade dos outros, mas não suporta e se afasta, para chorar perto dali.

Em 1992, um assessor político de Bill Clinton, James Carville, explicou ao presidente estadunidense George Bush o que causara sua derrota para os democratas no Congresso com uma frase que reverberou mundo afora: “É a economia, seu estúpido”.  Parafraseando Carville, talvez seja hora de dizer aos que ainda entendem as questões climáticas apenas sob o aspecto econômico: “É de vidas que estamos tratando, seu estúpido”.

Sem a veemência verborrágica, é claro, porque não ficaria bem a um documentário papal, é mais ou menos este o recado de “A Carta”.

Nada mais oportuno. No dia 15 de novembro, segundo estimativas das Nações Unidas, chegamos a 8 bilhões de pessoas no mundo.

A COP27 terminará esta semana e não marcará nenhum gol se não decidir, a sério, que os países ricos devem contribuir para os países pobres lidarem com as consequências dos eventos extremos às vidas. Será preciso também levantar questões de justiça climática aos povos que estão na trincheira, tentando preservar florestas.

Por

Amelia Gonzalez

Jornalista, durante nove anos editou o caderno Razão Social, encartado no jornal O Globo, que atualizava temas ligados ao desenvolvimento sustentável. Entre 2013 e 2020 foi colunista do G1, sobre o mesmo tema. Atualmente mantém o Blog Ser Sustentável, onde as questões relacionadas ao meio ambiente, ao social e à governança são tratadas sempre com ajuda de autores especialistas.