RIO DE JANEIRO, RJ (FOLHAPRESS) – As companhias que operam na ponte aérea entre Congonhas (São Paulo) e Santos Dumont (Rio de Janeiro) apresentaram aos dois aeroportos justificativas divergentes para mais de um terço dos cancelamentos de voos no ano passado.

Parte das divergências nas informações impacta diretamente no cálculo do índice de regularidade cobrado das companhias no uso de slots dos dois aeroportos, os mais congestionados e disputados no país.

Toda rota de voo utiliza dois slots: um no aeroporto de partida e outro no de chegada. Ao cancelar um voo da ponte aérea, as companhias são obrigadas a apresentar uma justificativa para cada um dos aeroportos por não utilizarem o espaço reservado a elas.

A cobrança ocorre porque Santos Dumont e Congonhas são considerados aeroportos coordenados, em que há intensa disputa por uma posição a ser operada —o mesmo ocorre em Guarulhos e Recife. Resolução da Anac exige das empresas um índice de utilização de 80% dos slots. Contudo, não é considerado no cálculo cancelamentos por motivos fora da capacidade de gerenciamento das empresas, como má condição climática.

Procurados, Anac (Agência Nacional de Aviação Civil), Infraero e Aena (atual concessionária de Congonhas) declararam não ter uma rotina de fiscalização das justificativas apresentadas pelas empresas para a não utilização dos espaços reservados a elas nesses aeroportos. Em nota, os órgãos atribuíram entre si a responsabilidade, mas nenhum declarou fazer a checagem dos motivos apresentados.

Em nota, a Latam afirmou que voos podem ser afetados como resultado de um “efeito cascata” causado por cancelamentos anteriores em outras rotas. A Azul disse que as informações “passam por avaliação e validação dos órgãos competentes”. A Gol afirmou que divergências podem ocorrer em razão de interpretações distintas dos operadores dos aeroportos sobre o motivo da não utilização dos slots.

Levantamento feito pela Folha mostra que em 35% dos voos cancelados no ano passado na ponte aérea houve divergência nas justificativas apresentadas aos dois aeroportos. Especialistas afirmam não haver razão para a diferença, já que o motivo de não utilização do slot de partida deveria ser o mesmo do de chegada.

Em 13% dos cancelamentos (ou 36% das justificativas divergentes), a incompatibilidade tem impacto direto no cálculo do índice de regularidade. Ou seja, enquanto uma das justificativas apresentadas é abonável para a pontuação, a outra não é.

Foi o que ocorreu, por exemplo, com o voo da Latam que partiria às 12h05 de Congonhas para o Santos Dumont no dia 5 de janeiro do ano passado.

O código apresentado em São Paulo para justificar o cancelamento foi o 72, que indica “problema no aeroporto de destino causado por condições climáticas adversas”. Contudo, no Rio de Janeiro, foi atribuído o código 43, que aponta “manutenção não programada da aeronave motivada por verificações especiais ou reparos adicionais”.

Algo semelhante ocorreu com o voo 2856 da Azul, que partiria às 18h25 do dia 3 de fevereiro do ano passado de Congonhas para o Santos Dumont. Em São Paulo, o motivo de cancelamento apresentado foi também o código 72, enquanto no Rio de Janeiro foi o 41 (“defeito na aeronave”).

A Gol também registrou divergências semelhantes. O voo 1021 que partiria do Santos Dumont para Congonhas às 12h10 do dia 25 de julho foi cancelado. No aeroporto de saída, o motivo apontado foi “problema de rotação de aeronave devido atraso de voo em etapa anterior, [causado por] condições climáticas adversas no aeroporto de destino” (código 93V). No de chegada, foi alegado “defeito na aeronave” (código 41).

Em todos os três casos, o código apresentado no aeroporto de partida confere abono no cálculo do índice de regularidade, enquanto o outro não.

A Latam é a que apresenta, proporcionalmente, mais justificativas divergentes (61% do total de cancelamentos no período) e casos que impactam no índice de regularidade (20% dos cancelamentos), seguida da Azul (38% e 9%, respectivamente) e Gol (13% e 6%, respectivamente).

O advogado Thiago Valiati, doutor em Direito Administrativo pela USP, afirma que a portaria da Anac que estabelece as regras deixa em aberto “os critérios que embasam a indicação de determinado código de justificativa para ilustração das ocorrências verificadas”.

“A omissão da norma da Anac pode abrir a possibilidade para a má utilização dos códigos de justificativas pelas empresas aéreas, a fim de que não sejam penalizadas em relação ao cálculo do índice de regularidade da série de slots”, diz.

A portaria da Anac lista 14 categorias de motivos para não utilização do slot. Elas se subdividem em 150 “causas de ocorrência”, cada uma com um código específico, das quais 82 são abonáveis no cálculo do índice de regularidade cobrado das companhias aéreas.

“Essa eventual má utilização [dos códigos] deve ser muito bem fiscalizada pela agência, a fim de não gerar distorções no setor, sobretudo considerando o contexto da restrição recente dos voos do aeroporto Santos Dumont, fruto de uma escolha política para tentar salvar a concessão do aeroporto do Galeão, e a grande disputa das empresas pelos slots da conexão aérea mais movimentada do país”, afirma Valiati.

O advogado Fernando Vianna, coordenador do Comitê de Regulação de Infraestrutura Aeroportuária da FGV Direito Rio, diz que as divergências podem “se dar por diversos motivos, inclusive erros materiais de boa-fé”.

“Não me parece ser razoável presumir que haja o fornecimento de dados ou informações inverídicas por parte das empresas aéreas. Até porque, isso pode acarretar consequências jurídicas graves, inclusive com base na lei anticorrupção brasileira”, afirma.

ÓRGÃOS AFIRMAM NÃO TER ATRIBUIÇÃO DE FISCALIZAR; EMPRESAS DIZEM SER REGULADAS

A Anac afirma, em nota, que “cabe ao aeroporto a consolidação das justificativas reportadas pelas empresas aéreas e o envio dos dados”.

“As conciliações de dados não são uma atribuição da Anac, que, de qualquer forma, faz articulações pontuais com os operadores para frisar a importância da precisão na consolidação das informações”, diz a nota.

“Ainda é importante frisar que é do interesse do operador aeroportuário garantir a acurácia das informações levantadas, uma vez que a observação de irregularidades na consolidação das informações pode acarretar o não aproveitamento desses slots, trazendo perdas no uso da infraestrutura aeroportuária para o operador.”

A Infraero, que opera o Santos Dumont e atuou em Congonhas até outubro do ano passado, diz que a Anac e o Decea (Departamento de Controle do Espaço Aéreo), da Aeronáutica, eram responsáveis pela “apuração das justificativas para abono do slot não utilizado”. A estatal declara atuar apenas quando a causa apontada se refere à infraestrutura aeroportuária.

O Decea informou que a responsabilidade sobre a apuração é da Anac.

A Aena, que assumiu a operação de Congonhas em outubro do ano passado, diz que “cabe à agência a fiscalização das informações prestadas pelas empresas aéreas”.

A Latam diz que “a maior parte dos cancelamentos ocorre por questões alheias ao seu controle”.

“Quando uma aeronave é impossibilitada de decolar ou pousar em algum aeroporto por situações alheias ao seu controle, como questões meteorológicas ou de infraestrutura, os demais voos programados para aquela aeronave podem ser impactados em uma espécie de ‘efeito cascata'”, diz a companhia

A Azul afirma que “o setor aéreo é altamente regulado, por meio da regulamentação da Anac, e a companhia atua em total consonância e transparência em relação ao registro de informações aeroportuárias que passam pela avaliação e validação dos órgãos competentes”.

A Gol diz que as divergências nas justificativas podem se dar em razão de diferença na interpretação entre os operadores dos dois aeroportos.

“Em um mesmo voo há administradores distintos e que, após diligências internas, podem ter interpretações distintas da motivação do cancelamento. Cumpre esclarecer que essa visão final pode estar ou não alinhada ao código sugerido pela empresa aérea”, diz a Gol.

“Ainda sobre o tema, é usual ter múltiplos fatores que causam cancelamentos, como um atraso meteorológico seguido por um de manutenção. Essa complexidade pode gerar a aparente distorção na informação de um mesmo voo.”