FOLHAPRESS – Para o bem e para o mal, quem consegue ficar indiferente a um filme como “Pobres Criaturas”? É quase impossível não se incomodar com muitas de suas cenas. As mais cirúrgicas podem causar repulsa, asco, revolta. E, diante de certas tiradas da maravilhosa protagonista, não dá para segurar o riso.

O longa de Yorgos Lanthimos não tem nada de realista: o figurino, exuberante, é o suprassumo do anacronismo, Lisboa parece uma cidade de mentira e a própria história parte da premissa pouco verossímil do implante do cérebro de um feto no crânio de sua mãe morta.

Ainda assim, algumas passagens são tão eletrizantes que conseguem suspender a descrença da plateia. Um exemplo é a sequência do baile lisboeta em que Bella Baxter —Emma Stone, fantástica— experimenta o prazer da dança quebrando todos os protocolos, enquanto seu parceiro, Duncan Wedderburn —Mark Ruffalo, hilário— se desdobra, tentando acompanhá-la e controlá-la.

Talvez porque o filme provoque tantos efeitos e sensações fortes, boa parte do público —e da crítica— ou o incensa, ou o condena, bem de acordo com a tônica de nossos tempos polarizados. Problemas graves de “Pobres Criaturas” têm sido pouco comentados, talvez esquecidos pelos espectadores mais embalados com a performance do elenco e a ousadia da protagonista.

É verdade que os excessos da direção são uma característica do estilo de Lanthimos, mas nem por isso devemos perdoar seus deslizes maneiristas. Por que o cineasta decide filmar alguns planos com lente olho de peixe? No cinema, o uso da grande angular extremada costuma ter fundamento na narrativa, por exemplo, quando se trata de imagem produzida por câmeras de vigilância, ou quando um personagem espia a cena pelo olho-mágico ou o buraco da fechadura.

Já a máscara negra ao redor da imagem sugere que o observador da cena está escondido. Isso é insinuado esteticamente em “Pobres Criaturas”, pois alguns dos planos filmados com olho de peixe têm a máscara negra circular que dá a impressão desse olhar espião. Mas nenhum personagem ocupa o lugar do observador.

Outro ponto no qual o filme me parece inconsequente tem a ver com o feminismo que alguns críticos, sobretudo homens, enxergam nele.

Criados pelo escritor escocês Alasdair Gray, autor do romance que inspirou o longa, os personagens God —Willem Dafoe, irresistível em sua estranheza— e Bella funcionam como uma extrapolação da relação da medicina com as mulheres. Elas que são objeto de experimentos científicos mais do que invasivos, tratadas como seres inferiores e submetidas a regras criadas por homens.

Experimente, se for mulher, fazer uma mamografia após assistir ao filme. Aposto que vai pensar na mente masculina que inventou tal objeto de tortura.

Quando reage com seu cérebro infantil às imposições sociais da era vitoriana, transgredindo em busca do próprio deleite, Bella joga luz sobre a violência com que a sociedade produziu a histeria para depois “cuidar” da “doença”. É, sim, libertador ouvi-la falar que quer transar bastante e aproveitar a vida antes do casamento ou que perdeu o tesão pelo amante que tenta aprisioná-la.

O longa de Lanthimos remete às histórias de Frankenstein e Pigmaleão, nesse embate entre o desejo de controle do mestre e a força da criatura. Tem sido aproximado também de “Barbie”, de Greta Gerwig, com o qual guarda não só diferenças, mas semelhanças. É curioso que as protagonistas desses dois filmes fortes do último ano caminham no descompasso característico de quem está aprendendo a ficar em pé, ambas escancarando, com comentários aparentemente ingênuos, as violências e contradições do patriarcado.

Comparação ainda mais interessante foi feita por Alcides Villaça, professor de literatura da USP, para quem Bella Baxter faz pensar em “O Enigma de Kaspar Hauser” (1974), de Werner Herzog. O protagonista do filme alemão, baseado em uma narrativa verídica ambientada no mesmo século 19 de “Pobres Criaturas”, é um garoto que cresceu enclausurado, privado de convívio com humanos e que, por isso, mal sabe locomover-se, falar, comer. Quando colocado em contato com a sociedade, não consegue aceitar suas regras.

Mas, se “Pobres Criaturas” de fato expõe a violência das convenções sociais e da medicina, o filme reproduz a visão do corpo feminino como terreno de observação e experiência, reiterando certo sadismo que tentaria criticar.

O veloz amadurecimento de Bella poderia ilustrar o “tornar-se mulher” de que fala Simone de Beauvoir, e o cineasta grego teria assim conseguido produzir uma obra feminista desprovida de chatices moralistas. Infelizmente não é o caso.

Trata-se, sim, de um filme divertido, com elenco de excelência, mas seu maneirismo sádico o distancia de qualquer geração do pensamento feminista.

Que o desfecho envolva uma vingança saboreada a goles de gim enquanto o ex violento pasta só reitera o sadismo delirante muito mais próximo da lógica de dominação masculina.

POBRES CRIATURAS

– Avaliação Bom

– Quando Em cartaz nos cinemas

– Classificação 18 anos

– Elenco Emma Stone, Mark Ruffalo e Willem Dafoe

– Produção EUA, Reino Unido e Irlanda, 2023

– Direção Yorgos Lanthimos