MILÃO, ITÁLIA (FOLHAPRESS) – O Parlamento da Itália começou a analisar um projeto de lei que limita a obtenção da cidadania para descendentes. O texto, proposto por um senador do Irmãos da Itália, partido de ultradireita fundado pela primeira-ministra Giorgia Meloni, determina que o reconhecimento sem necessidade de morar no país seja feito até a terceira geração (bisnetos), desde que se comprove que o requerente fale o idioma italiano. Ainda não há previsão para a votação em plenário.

Apresentado em junho do ano passado por Roberto Menia, o projeto ficou parado até o fim de janeiro, quando foi incluído na pauta da Comissão de Assuntos Constitucionais do Senado, o primeiro passo da sua tramitação.

Dias antes, prefeitos e integrantes do Judiciário do norte da Itália haviam reclamado publicamente da sobrecarga causada, nos serviços de registros civis e nos tribunais, por pedidos de cidadania de brasileiros ligados a antigos emigrados.

O texto, que altera uma legislação de 1992, estabelece que a cidadania por direito de sangue (ius sanguinis, em latim, como é chamado) seja reconhecida àqueles que descendem em linha reta até o terceiro grau do cidadão italiano –ou seja, até quem for bisneto ou bisneta.

Se o parentesco superar a terceira geração, o solicitante precisa morar por pelo menos um ano na Itália, antes de apresentar o pedido na cidade em que reside. Nos dois casos, será exigido certificado de conhecimento da língua, com nível intermediário.

Se aprovada, a mudança deverá impactar os brasileiros de origem italiana que pretendem ter acesso à cidadania por sangue, atualmente reconhecida sem limite de gerações. A Embaixada da Itália no Brasil estima que existam 30 milhões de descendentes no país, um dos reflexos do movimento de massa ocorrido entre 1870 e 1920, quando 1,4 milhão de italianos entrou no Brasil, 42% do total de estrangeiros que vieram nesse período.

Embora outras propostas com intenção parecida tenham circulado no Parlamento italiano nos últimos anos, a inclusão do projeto na pauta de uma comissão do Senado, no atual cenário político, aumenta as chances de ele avançar em seu percurso legislativo, diferentemente dos anteriores.

O partido de Meloni possui a maior bancada do Senado, com 63 cadeiras, e garante a maioria absoluta dos votos com as outras siglas da coligação. Além de o projeto de lei ser iniciativa de um senador governista, o Irmãos da Itália ocupa a presidência tanto da comissão em que começou a tramitação quanto a do Senado. Na Câmara, para onde o projeto seguirá se aprovado, o governo também tem situação confortável. Em uma estimativa otimista, a tramitação nas duas Casas pode durar mais de um ano.

“Se houver vontade política da parte do governo, é possível que a lei seja aprovada”, afirma à Folha o deputado italiano Fabio Porta, eleito na América do Sul pelo Partido Democrático, de oposição. “Alguns erroneamente pensavam que um governo de direita fosse ser mais amigo dos ítalo-descendentes e fechasse as portas aos imigrantes da África ou da Ásia. Eu sempre disse que um governo que não vê com bons olhos a imigração afetaria também os ítalo-descendentes”, diz Porta.

Eleita em 2022, Meloni fez uma campanha com forte discurso anti-imigração e mantém o tema como uma das bandeiras do governo, apesar de não ter conseguido frear a chegada de estrangeiros irregulares pelo mar Mediterrâneo.

Autor do projeto de lei, o senador Menia afirma que a intenção é acabar com o “mercado indigno de cidadanias e passaportes”, especialmente na América Latina. “Há quem, por causa de dez gerações atrás, diga ser italiano e ter direito ao passaporte italiano, que permite ir a Miami e entrar na União Europeia”, disse o político em junho do ano passado, ao comentar a proposta.

Parte das autoridades, incluindo prefeitos como o de Val di Zoldo, no Vêneto, acusa os descendentes longínquos de buscarem a cidadania justamente para ter o passaporte e circular com mais facilidade dentro da área Schengen e entrar nos EUA sem necessidade de visto.

“A cidadania é uma coisa séria, assim como o pertencimento nacional e a italianidade. Significa aderir a uma série de princípios não escritos que passam pelo modo de ser, os valores em que você acredita e a língua que fala”, afirmou Menia.

Além do clima político favorável à restrição de descendentes, a reportagem apurou que, mesmo antes da chegada de Meloni ao poder, a limitação já era vista com simpatia pelo Ministério das Relações Exteriores. Nesse caso, seria uma forma de desafogar o trabalho dos consulados em países como o Brasil.

Para o deputado Porta, os processos que envolvem as cidadanias podem ser melhorados, mesmo sem mudar o direito de reconhecimento dos descendentes. Em vez de colocar limites, ele se diz favorável a incluir condições, como o conhecimento da língua italiana, da história e da Constituição.

“Seria um modo de associar a esse reconhecimento de sangue um verdadeiro pertencimento à comunidade italiana. E não apenas a busca de uma ferramenta de viagem”, afirma. “Espero que o Parlamento possa debater e melhorar esse projeto de lei.”