SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Dezenas de médicos acusam empresas e organizações sociais contratadas para gerenciar plantões na região metropolitana de São Paulo de calote e atraso nos pagamentos pelos serviços prestados em 2023.

Os valores chegam a R$ 50 mil, e a demora no pagamento já dura de 20 dias a um ano e meio, segundo fontes ouvidas pela reportagem. As empresas citadas são a MS Emergências Médicas, RNF Serviços Médicos SS Ltda., Centro de Diagnóstico de Cabreúva Ltda., Santa Casa de Misericórdia de União e o Instituto Nacional de Ciências da Saúde.

Elas foram contratadas para gerenciar plantões prestados em serviços da rede pública, em eventos públicos e privados e em ambulatórios de estabelecimentos privados, como shoppings.

Muitos dos acusadores são médicos recém-formados e foram contratados para os serviços por meio de trocas de mensagens com profissionais conhecidos como “escalistas”, responsáveis por agendar data, local e valor do pagamento, sem contratos ou documentos que comprovem um vínculo empregatício. Após os plantões, a pessoa responsável diz que as organizações vão efetuar os pagamentos em 30 a 60 dias, mas atrasam o combinado e depois param de responder, não cumprindo os acordos.

A reportagem procurou todas as empresas citadas para esclarecimento. Em nota, a MS Emergências Médicas afirma pagar seus colaboradores e prestadores de serviço, enquanto o Instituto Nacional de Ciências da Saúde disse que deixou de pagar diversos prestadores por falta de repasse do município de Embu das Artes. A Santa Casa de Misericórdia de União disse ter uma ação judicial em andamento também contra a Prefeitura de Embu das Artes, onde também prestou serviço, e que não vai se manifestar. As demais não responderam até a publicação da reportagem.

Letícia Basuino, 26, formada em medicina no final de 2022, diz ser uma dessas vítimas. Nas trocas de mensagens com uma escalista, ela agendou sete plantões entre agosto e outubro de 2023 com a MS Emergências Médicas, pelos quais receberia R$ 650 por plantão. Em um primeiro momento, a empresa atrasou o pagamento dos plantões de agosto e setembro, e deixou de pagar os plantões de outubro, o que representa uma dívida de R$ 1.950, ainda em aberto. Basuino fez um boletim de ocorrência online, mas não formalizou a denúncia.

“A sensação é de revolta por que no Brasil, para médicos recém-formados, infelizmente, estamos sujeitos a esse tipo de situação, a trabalhar em lugares informais, que não dão nenhum direito”, lamenta Basuino.

A médica Camila Mazza, 30, também afirma ter sido vítima da MS Emergências Médicas após dar três plantões, de outubro a novembro de 2023, cada um correspondendo a R$ 800. Ela diz não ter recebido até hoje, e decidiu entrar com um processo judicial contra a empresa.

Mazza afirma já ter dado muitos plantões para outras companhias, que sempre pagavam o combinado, mas após o ocorrido criou um grupo privado de mensagens no WhatsApp, hoje com 163 participantes, onde compartilha com outros colegas calotes da mesma empresa.

Sergio Freitas, 68, é médico aposentado. Ele diz ter criado um grupo de mensagens para divulgar oportunidades de trabalhos, como plantões, com outros profissionais. A partir de 2020, porém, notou um aumento no número de denúncias de colegas por parte de empresas que não efetuavam o pagamento, o que o motivou a criar grupos específicos para abordar esse tipo de comportamento —e ajudar médicos a evitá-las. Os grupos —hoje cinco— já contam com 260 a 1.017 membros. Ele não quis divulgar quais empresas são mais mencionadas.

Além das denúncias dos médicos, a reportagem conversou com dois escritórios de advocacia que representam alguns desses plantonistas nas ações. Os nomes das empresas envolvidas não foram mencionados para preservar os processos.

A advogada Rita de Cássia Gonçalves, especialista em direito médico, diz ter recebido 250 pedidos de ajuda relacionados a plantonistas da região metropolitana de São Paulo no último ano. Desses, nem todos quiseram tentar acordo ou mover uma ação. Os casos tiveram início em setembro de 2022 e, desde então, ela já fechou 62 acordos e entrou com 16 ações contra empresas desde dezembro de 2023.

Segundo ela, como os pagamentos em atraso variam de R$ 650 a R$ 1.200 por plantão, a dívida das empresas já ultrapassa R$ 100 mil —cerca de R$ 8.000 a R$ 50 mil por médico. Nos acordos fechados, as empresas efetuam os pagamentos em 20 a 30 dias.

A advogada Marina Luiza Miguel Lopes, especialista em direito civil, contratos e empresarial, também atende alguns desses casos, e afirma que o escritório em que trabalha recebeu 36 pedidos no ano passado, a maioria de médicos recém-formados, de 26 a 35 anos de idade. Os pagamentos totais em atraso variam de R$ 7 mil a R$ 50 mil.

Procurado, o Cremesp (Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo) disse que recebeu cerca de 150 denúncias relacionadas a assuntos médicos nos três primeiros meses de 2024, 51% sendo de reclamações de atrasos e calotes de pagamentos, incluindo casos de plantonistas.

O órgão disse ainda que impõe medidas contra as empresas que atrasam pagamentos perante as autoridades. Para casos com denúncias recorrentes, o presidente do conselho, Angelo Vattimo, disse estar buscando não renovar o alvará de funcionamento das empresas e entrar com processos administrativos para suspensão destas.

“Muitas vezes, os médicos acabam não vislumbrando os contratos dessas empresas, que se aproveitam disso”, disse o médico. “Quando uma empresa é caloteira, ela fica com fama, então as pessoas não devem trabalhar para elas.”

Já o Simesp (Sindicato dos Médicos de São Paulo) recebeu mais de cem denúncias relacionadas a atrasos e calotes no último ano, incluindo casos de plantonistas, afirma Augusto Ribeiro Silva, presidente da associação. Um documento obtido pela reportagem indica o registro de 78 denúncias de supostos atrasos e falta de pagamentos relacionados a atendimentos na rede de saúde pública do município de Embu das Artes de 2022 a 2023.

Em nota, a Prefeitura de Embu das Artes disse que tem conhecimento dos casos, e que estes estão ligados a organizações sociais que tiveram seus contratos rescindidos e não prestam mais serviços à municipalidade.

“O pagamento para as empresas sempre foi feito, no entanto, ao que parece, as OSs [Organizações Sociais] não faziam os repasses aos profissionais. A prefeitura atua na fiscalização constante das empresas contratadas, tanto que penalizou uma delas severamente declarando sua inidoneidade”, diz. “A fiscalização tem surtido efeito, já que nos últimos meses não registramos falta de pagamento aos médicos pela atual empresa.”

Outro caso citado é com o Hospital Municipal da Brasilândia, no Jardim Maristela, em São Paulo. Em nota, a SMS (Secretaria Municipal de Saúde) disse que todos os pagamentos foram efetuados corretamente às gestoras e que as medidas cabíveis foram adotadas.

O Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região disse que não consegue determinar se tem casos referentes especificamente a médicos plantonistas. O Ministério Público do Trabalho afirmou que tem dois inquéritos ativos contra o Instituto Nacional de Ciências da Saúde desde o ano passado, e não encontrou inquéritos ativos relacionados às outras empresas e organizações citadas pela reportagem.

A recomendação de Lopes para médicos que desejam dar os plantões é buscar os nomes das empresas, formular um contrato ou documento juridicamente válido para formalizar a contratação, procurar por referências daquela empresa e vagas por meio de plataformas confiáveis, não por trocas de mensagem.

Já Gonçalves diz para pesquisar se a empresa em questão está envolvida em processos, além de realizar registros fotográficos do dia, hora, quantidade de atendimentos, local e nome dos pacientes, além de prints da troca de mensagens com os funcionários das empresas. “Fazer o máximo de prova possível”, diz.