BRASÍLIA, DF (FOLHAPRESS) – Apesar do reconhecimento das ações das Forças Armadas na desintrusão do garimpo ilegal na Terra Indígena Yanomami, a insatisfação com a atuação dos militares no local que existia durante o governo de Jair Bolsonaro (PL) persiste no primeiro ano da atual gestão Lula (PT).

Documentos obtidos pela Folha e relatos de pessoas que atuam na região apontam para omissão e falta de empenho, além de desconfiança de boicote.

Quem atua na região há anos afirma, sob reserva, que a falta de empenho das Forças Armadas durante o governo Bolsonaro foi fundamental para o crescimento do garimpo no território. Essas pessoas afirmam ver uma melhora na interlocução sob Lula, mas dizem que as dificuldades persistem.

Três motivos específicos são citados por diversos envolvidos na operação para essa avaliação: a negativa de suporte por falta de verba, a necessidade súbita de manutenção das aeronaves e o problema com o chamado corte do motor.

Esse é o nome dado para quando, após um pouso, o motor do helicóptero é desligado para poupar combustível e depois é religado.

Agentes reclamam, por exemplo, de que chegaram a fazer operações de repressão ao garimpo ilegal no ano passado planejadas para durar o dia inteiro, mas que, já com a ação em andamento, eram avisados pelos militares de que a aeronave não poderia ser desligada. Assim, a atividade teve que durar muito menos tempo.

“Não foi possível realizar a destruição do acampamento, diante do pouco tempo disponibilizado para atuação da equipe em solo, em razão da autonomia da aeronave H36, que não pode cortar o funcionamento do motor”, diz um relatório interno da operação, de março de 2023, obtido pela Folha.

Também sob anonimato, integrantes das Forças Armadas que atuam na região explicam que isso acontece porque os protocolos militares são muito mais rígidos que, por exemplo, os de Polícia Federal (PF), Força Nacional, Funai (Fundação dos Povos Indígenas) ou Ibama.

O problema da manutenção súbita dos helicópteros surge em relatórios dos últimos anos das operações na TI Yanomami.

Em 2021, uma ação para destruição de garimpos foi abortada porque um helicóptero Black Hawk “deu pane no meio do caminho” para Boa Vista e foi para o conserto.

A aeronave ficou disponível no dia seguinte, mas três dias depois, novamente “se encontrava em manutenção em Boa Vista/RR, não sendo possível operar”.

Relatórios citam também operações “parcialmente executadas” ou adiadas por aeronaves com problemas orçamentários das Forças Armadas.

“[Os recursos] foram esgotados […] não havendo previsão de novo aporte orçamentário”, diz a Defesa em ofício de 2023, sobre a entrega de alimentos.

Pessoas envolvidas nas ações questionam a necessidade de novos aportes, já que é atribuição das Forças Armadas o controle das fronteiras e a TI Yanomami fica na divisa com a Venezuela –só em 2023, foram R$ 300 milhões em crédito extra para a Defesa atuar na operação.

Os militares ainda proíbem qualquer aeronave não autorizada de sobrevoar o território indígena, mas mesmo assim o garimpo sobrevive graças ao apoio de aviões ilegais.

“A gente acompanhou de perto a situação no governo Bolsonaro, uma omissão proposital, um plano de não combater o garimpo. Eles não conseguiam ver o garimpo ou a circulação de aeronaves ilegais como algo que afrontasse a soberania nacional”, afirma Ivo Makuxi, assessor jurídico do Conselho Indígena de Roraima.

“No atual governo, mudou o diálogo, mas a gente ainda vê certa intenção dos militares em boicotar essas operações”, diz. “Os militares não estão na Terra Indígena há mais de 30 anos? Há mais de 30 anos o massacre yanomami acontece. Como os militares não viram?”

Neste domingo (21), a Hutukara Associação Yanomami divulgou nota em que relata ter pedido por email a órgãos do governo federal, desde 18 de dezembro, autorização para voos de monitoramento neste mês, mas que não houve resposta da Aeronáutica.

De acordo com a entidade, os voos serviriam para verificar a situação das áreas afetadas pelo garimpo ilegal após diferentes alertas feitos por comunidades indígenas. Segundo o Estado-Maior da Aeronáutica, a solicitação deu entrada no sistema em 4 de janeiro e estava sendo tratada na subchefia.

“Sem reposta do pedido de autorização para os sobrevoos, a Hutukara teve que cancelar o trabalho que agora está sem previsão para acontecer”, afirma a associação.

Procurada, a ministra dos Povos Indígenas, Sonia Guajajara, afirmou que conta com os militares para o sucesso da operação Yanomami, o que inclui não só a desintrusão do garimpo, mas também a recuperação cultural e alimentar dos indígenas, com a reconstrução das roças e a descontaminação dos rios.

“A gente dependeu muito da Defesa para este apoio logístico, para as equipes chegarem, para a entrega de materiais, cestas, mas mesmo assim não foi suficiente”, afirma Guajajara à Folha.

Ela lembra que agora o governo destinou mais R$ 1,2 bilhão para a atividade. “Iremos implementar um contrato extra de aeronaves para aumentar essa capacidade logística.”

Em maio deste ano, o MPF afirmou que “informações preliminares” indicavam que o apoio logístico da Defesa era “limitado ao transporte aéreo, moroso no atendimento das solicitações dos agentes em atuação de campo e insuficiente no tocante ao escopo da operação, impedindo a expansão das ações de repressão ao garimpo”.

“Tal prática já fora identificada em anos anteriores pelo MPF como uma das principais causas para o sistemático descumprimento de ordens judiciais para repressão a invasores do território indígena”, completava o documento.

Procurada, a Defesa não respondeu.

Como mostrou a Folha, relatórios mostram que a falta de empenho das Forças Armadas encalhou 34 mil cestas básicas que deveriam ter sido entregues aos indígenas em Roraima.

Ao mesmo tempo, o fechamento do espaço aéreo no território pela FAB (Força Aérea Brasileira) nunca conseguiu inibir o ir e vir de aeronaves ilegais dos garimpeiros, inclusive vindas da Venezuela.

Durante o governo Bolsonaro, o garimpo ilegal explodiu no território, causando o surto de malária, a contaminação dos rios por mercúrio e alastrando a desnutrição pelos indígenas.

A Folha mostrou que a gestão Lula herdou de seu antecessor instalações de saúde com remédios vencidos, seringas orais reutilizadas indevidamente e fezes espalhadas em unidades de atendimento, com desvio de comida e de medicamentos.

Em 20 de janeiro de 2023, foi decretado estado de emergência sanitária e determinado o início de uma operação não só para desintrusão dos garimpeiros, mas para recuperação da saúde dos povos –um ano depois, porém, a missão ainda não expulsou totalmente os invasores e os indígenas ainda convivem com a desnutrição.

Os militares têm dois batalhões dentro da terra indígena para monitorar a fronteira com a Venezuela, mas mesmo assim enormes garimpos foram criados próximos destas unidades.