Foto: Bruno Alvares/Riot Games

SÃO FRANCISCO, EUA (FOLHAPRESS) – A indústria de games está presa em um ciclo vicioso de modelos e temas pré-fabricados, que a impedem de tomar riscos e fazer jogos realmente inovadores. Essa é a opinião de Sam Barlow, 44, considerado um dos principais responsáveis pela recente onda de games que usam filmagens e atores reais como matéria-prima para contar histórias interativas.

À Folha de S.Paulo, ele diz que a ideia surgiu quase por acaso quando estava planejando “Her Story”, de 2015, seu primeiro jogo independente, mas chegou em um novo patamar em “Immortality”, que chega neste mês ao PlayStation 5 após lançamento em outras plataformas, no qual diz ter conseguido explorar uma estética realmente cinematográfica.

No game, que parte de fragmentos de três filmes incompletos, feitos entre 1960 e 1990, todos protagonizados pela misteriosa atriz Marissa Marcel, ele discute a importância da arte para os seres humanos e aborda sem pudores temas que são tabu na indústria de games como nudez, sexo e religião.

“Há tanta exploração de violência, tanta representação de violência, celebração de violência nos videogames em geral. Me parece um problema que não estejamos explorando sexo, que é uma parte tão fundamental da experiência humana”, afirma.

“Pensando que produzir uma obra de arte é um projeto de imortalidade, ver toda uma produção perdida parecia uma metáfor,a capaz de explorar essas questões.”

A mecânica dos seus games foge dos gêneros mais comuns, propondo narrativas não lineares por meio de interfaces —telas de computador no caso de “Her Story” e “Telling Lies”, de 2019; e uma moviola com restos de película em “Immortality”, que revela imagens sobrenaturais quando os filmes são rodados de trás para frente.

“A exploração não é espacial, você está navegando pela história”, resume o diretor. É algo que evolui desde a primeira aposta independente de Barlow após sua experiência como operário da indústria, em franquias como “Silent Hill” e “Legacy of Kain”. Nesses anos, ele se frustrou com a lenta evolução do mercado, mais disposto a investir tempo e dinheiro em sucessos garantidos que em ideias inovadoras.

Na sua produção mais recente e ambiciosa, Barlow, hoje dono da desenvolvedora Half Mermaid, segue assumindo todas as rédeas —concebe a ideia, escreve o roteiro, dirige as gravações e os atores— para ter controle total sobre suas obras.

“Quando comecei a trabalhar com equipes de cinema independente, achei que deveria ser humilde. Mas rapidamente percebi que, como esses projetos saem da minha cabeça, ainda sou eu quem tem a melhor perspectiva do que vai funcionar.”

Além das temáticas, o autor se afasta da corrida por tecnologias visuais avançadíssimas e, mesmo na pós-produção, usa efeitos visuais simples, apenas em busca de mais textura para as imagens. Isso faz, no caso de “Immortality”, com que cada um dos três filmes sejam bem distintos.

O primeiro, uma espécie de “soft porn” num convento gótico, remete à fotografia quente de filmes dos anos 1960. O segundo é um filme policial à Dario Argento, numa trama sanguinária de mistério que passeia entre apartamentos, bares e galerias de arte nova-iorquinos. Já o último, sobre uma estrela pop que foge dos holofotes após encontrar uma sósia, reflete a obsessão de Brian De Palma por duplos e dublês de corpo.

“Foi importante tocar em tabus porque cresci admirando cineastas como Ken Russell, Derek Jarman, Nicolas Roeg e Peter Greenaway”, diz. “Coletivamente eles eram extravagantes e indulgentes, explorando toda a gama de dramas da experiência humana.”

Do mundo dos games, porém, Barlow se inspira em obras mais populares. “Os jogos da Nintendo têm mecânicas muito simples, mas há uma riqueza que permite que nós nos expressemos através delas. É esse tipo de liberdade que quero dar aos jogadores. Em ‘The Legend of Zelda’, é a liberdade de explorar um cenário. Para mim, é a liberdade de explorar a história.”

É uma liberdade que, reconhece o diretor, pode fazer com que nem todo o conteúdo do jogo seja visto de uma vez só. Mas, para ele, essa é parte de graça. “Minhas histórias e filmes favoritos têm elementos que talvez a audiência perca ou não entenda. Para que exista um sentimento de exploração você precisa entender que vai perder algumas coisas.”

É explorando esse mesmo sentimento de mistério que o Barlow colocou no ar na última terça-feira (23) teasers de seus novos projetos. “Project C” e “Project D” são apresentados na loja virtual Steam com textos com trechos censurados e imagens surrealistas, indicando que seu próximo jogo (ou jogos) será ainda mais experimental que “Immortality”.

O jornalista viajou a convite da Abragames (Associação Brasileira das Desenvolvedoras de Jogos Eletrônicos).