SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – “Ficção Americana” não é um título ao acaso. Ele trata, em forma de comédia, da crença que os Estados Unidos criou e dissemina de que se combate o racismo pela superestrutura, ou seja, a linguagem.

Passemos pelo fato de que os EUA nunca assimilaram a ideia de que “raça” só existe uma, a humana, e patrocinam, mesmo no presente, uma estranha catalogação, que começa pelo branco “puro” (dito caucasiano), passa pelo moreno com origem no Lácio (“latino”) e chega aos asiáticos e negros e tudo mais.

Essa classificação racial, que produz uma série de guetos imaginários, é a primeira ficção de que trata o filme de Cord Jefferson. Ali, Monk, um professor de literatura depara-se com um problema grave quando pretende tratar de um livro escrito no Sul, que traz, no título, a palavra “negro” —que nos EUA é altamente ofensiva, sabe-se, bem mais do que, entre nós, tratar os negros como, por exemplo, “crioulos”.

O inverso dessa guetização consiste em adotar um vocabulário eufemístico, quando não hipócrita. Assim, logo na primeira cena do filme uma aluna branca se mostra sensível àquilo por que abordar “a palavra com N…”. Sendo ele mesmo preto, o mestre lhe diz que se trata de um livro escrito no Sul, e que ela acabaria por entender isso.

Ele certamente entende melhor que a moça o quanto a palavra —que se pronuncia “nigro” na língua inglesa— é ultrajante. Mas também sabe que a literatura não é algo que se produz para o gosto do dia. É o que ele tenta explicar, inutilmente. A garota sai indignada da sala e, na cena seguinte, o professor encontra-se numa reunião de departamento —ou algo assim—, para saber que certos alunos se sentiram “incomodados” com aquilo. Sem mais delongas, Monk é afastado. Estamos no império do significante em busca de algum significado.

Talvez, ao ver este filme, alunos compreendam porque os professores vivem, hoje, pisando em ovos em suas classes. Com essa operação linguística surgiu também uma cultura da delação que talvez não decorra dessa cultura, mas faz parte dela.

Afastado, Monk —trata-se de um apelido decorrente de seu prenome, Thelonious, que, obviamente, remete ao jazzista genial— tem não só de conviver com os inúmeros problema de sua família, em Boston, como suportar uma infindável leva de best-sellers que mostram “a verdade” da vida dos negros —ignorância, crime, morte etc— e são saudados com aquelas palavras habituais na crítica dos EUA: brilhante, inusitado, visceral —e por aí vai. Entre esses dois caminhos, o filme se sustentará.

Cansado de ser rejeitado pelas editoras, o desiludido Monk decide, ele próprio, arrumar um pseudônimo e escrever seu próprio romance vagabundo. Produz outra ficção, que é seu pseudônimo —um fugitivo da Justiça que narra as durezas clichê da vida de um afro-americano.

Como se pode presumir, a sua dupla ficção americana —o livro “fake” e o autor “fake”— é recebida com folguedos, desde as editoras até o público, passando, claro, pelos críticos e chegando aos produtores de cinema. O dinheiro começa a cair em sua conta, o que não o deixa feliz, como explicita, “quanto mais burro eu sou, mais rico fico”.

O que Monk pretende demonstrar com seu livro —e pelo jeito ninguém quer ver— é que a verdadeira ficção americana consiste em desautorizar o negro como sujeito e substituí-lo por uma série de estereótipos —bandido, rapper, perseguido, traficante—, que limitam, em sua visão, a experiência negra em vez de produzir um painel capaz de produzir um registro integral da experiência de pessoas de cor nos EUA.

Como diz um diálogo do filme, “os brancos não querem saber a verdade, só querem se sentir inocentes”. A auto-inocentação do branco, intermediada pela literatura negra. Com isso a literatura negra seria apenas decorrência imediata dessa ficcionalização alucinada dos negros.

O problema de Monk é que ele fala da vida de uma classe média negra dos EUA, ou seja, alguém cuja relação com as questões suscitadas na ficção americana, é relativamente distante. Suas questões são de relacionamento com os irmãos, as contas a pagar, o alzheimer da mãe, o namoro mal resolvido.

“Ficção” é, sem dúvida, a grande surpresa deste Oscar. Trata-se de uma comédia —não raro é possível rir lá como num bom Jerry Lewis, que também trata desse desajuste entre o sujeito e a cultura que o cerca—, com uma produção modesta, ainda que bem ajustada a seus objetivos, e de um filme que, afinal, vai na contramão do habitual sentimentalismo que tanto costuma agradar à Academia da premiação.

Aliás, nem Hollywood não escapará ilesa da sátira de “Ficção Americana”. Indicado a cinco prêmios no Oscar, é improvável que seja escolhido como melhor filme, a menos que mude inteiramente a mentalidade dos eleitores. Sua chance é em roteiro adaptado do romance de Percival Everett —pelo próprio e pelo diretor. Sensata neste particular, a Academia não escolheu o estreante Cord Jefferson para concorrer como melhor diretor.

Em todo caso, o filme rompe padrões não só da tela como de recepção. No Brasil, estreou discretamente, no Amazon Prime, e só agora chega aos cinemas. Nos EUA seduziu público e crítica. É irônico, mas talvez assinale que começou a saturação da ideia de salvação vocabular dos males do racismo. Mesmo porque “Ficção” deixa claro que negros continuam a ser mortos de maneira gratuita e selvagem pela polícia, não importa se chamados de “nigros”, “black people” ou “afro-americans”. E isso, infelizmente, está longe de ser uma ficção —lá como cá.