RIO DE JANEIRO, RJ (FOLHAPRESS) – Quase metade dos cancelamentos de voos da ponte aérea no ano passado feitos sob alegação de má condição climática em um dos aeroportos ocorreu em dias nos quais nem Congonhas (São Paulo) nem Santos Dumont (Rio de Janeiro) fecharam um minuto sequer.

Empresas aéreas, especialistas e a Anac (Agência Nacional de Aviação Civil) afirmam que a identificação de mau tempo inclui outras variáveis além do fechamento do aeroporto, como modelo da aeronave, certificados dos pilotos e rajadas de ventos momentâneas.

Contudo, o levantamento mostra cancelamentos em dias nos quais tanto Congonhas como o Santos Dumont operavam nas melhores condições climáticas possíveis. Uma das companhias aéreas reconheceu o erro na justificativa dada em um dos casos apontados.

Como mostrou reportagem da Folha de S.Paulo, as companhias apresentaram no ano passado justificativas divergentes aos dois aeroportos para cancelar voos da ponte aérea. Há também um vácuo na fiscalização dessas informações, já que nenhum órgão do setor assumiu a responsabilidade pela tarefa.

Toda rota de voo utiliza dois slots: um no aeroporto de partida e outro no de chegada. Ao cancelar um voo da ponte aérea, as companhias são obrigadas a apresentar uma justificativa para cada um dos aeroportos por não utilizarem o espaço reservado a elas.

A cobrança ocorre porque Santos Dumont e Congonhas são considerados aeroportos coordenados, em que há intensa disputa por uma posição a ser operada.

Resolução da Anac exige das empresas um índice de utilização de 80% dos slots. No entanto, não são considerados no cálculo cancelamentos por motivos fora da capacidade de gerenciamento das empresas, como má condição climática.

Dos 2.004 cancelamentos de voos nessa rota, 634 indicaram em ao menos uma das justificativas condição climática adversa no aeroporto de partida ou de chegada (código 71 e 72 da portaria da Anac sobre o tema). O levantamento não inclui mau tempo na rota (código 73).

Neste grupo, 279 (14% do total e 44% dos cancelamentos por mau tempo) ocorreram em dias nos quais nenhum dos dois aeroportos fechou.

Entre os 634 voos cancelados com indicação de má condição climática em um dos aeroportos, também foi identificado 368 divergências em relação ao código atribuído no outro ponto da rota (partida ou chegada).

Além disso, em 121 desses cancelamentos, o outro código atribuído não confere abono no cálculo do índice (6% do total de cancelamentos ou 19% dos que indicam mau tempo em um dos aeroportos).

Foi, por exemplo, o que ocorreu com o voo 3916 da Latam, que partiria às 14h do dia 25 de maio do ano passado de Congonhas para Santos Dumont. No aeroporto de partida, a empresa atribuiu o código 99 (“motivos diversos”) para justificar a não utilização do slot —causa não abonável no índice de regularidade. No de chegada, porém, incluiu o código 72 (“problema no aeroporto de destino causado por condições climáticas adversas”).

Dados da Rede de Meteorologia da Aeronáutica mostram, porém, que o Santos Dumont operou em condições visuais ao longo de todo o dia —são as melhores condições de voo, segundo especialistas ouvidos pela reportagem. Não houve, também, qualquer fenômeno naquele dia que impedisse o pouso.

Algo semelhante ocorreu com o voo 1031 da Gol em 29 de março de 2023, que sairia do Santos Dumont em direção a Congonhas às 14h40. A companhia atribuiu o código 72 como justificativa do cancelamento nos dois aeroportos.

O aeroporto de São Paulo operou ao longo de quase todo o dia em VFR (operação segundo as regras do voo visual), tendo uma leve piora apenas as 17h —mais de uma hora depois do horário previsto para pouso do voo. A companhia reconheceu o erro na atribuição do código, mas afirma que o correto seria outra justificativa também abonável no índice de regularidade —colisão de aeronave com um pássaro.

Entre as divergências nas justificativas, há também casos de contradição flagrante. Em 32 voos, o motivo dado para o cancelamento no aeroporto de partida foi má condição climática no de chegada (código 72), enquanto no de destino foi apontado motivo inverso: mau tempo na partida (código 71). Um é da Azul e os 31 restantes, da Latam.

A indicação de má condição climática em ao menos um dos aeroportos foi mais comum na Azul. Ela aparece em 85% dos 129 voos cancelados nesta rota no ano passado. Neste grupo da companhia, há divergência entre os códigos em 30% dos casos. Em 9%, a outra justificativa dada não confere abono.

A Latam inclui os códigos 71 e 72 em 44% dos cancelamentos que realizou no período nesta rota. Em 30% houve divergência entre os códigos, e em 10% a outra causa impacta no cálculo do índice de regularidade.

A Gol foi a que proporcionalmente menos usou condição climática adversa nos aeroportos como justificativa (6% dos cancelamentos).

O coordenador do curso de Aviação Civil da Universidade Anhembi Morumbi, Alexandre Kaperaviczus, diz que o aeroporto estar aberto não é o suficiente para indicar a possibilidade de pouso e decolagem.

“Não basta o aeroporto estar aberto. Isso é decisão do piloto. Ele vai analisar os dados meteorológicos. Dentro do avião, ninguém toma decisão se não for o piloto”, afirma.

Aroldo Soares, mestre em segurança de voo pelo ITA (Instituto Tecnológico de Aeronáutica), diz que há aeronaves que têm limitações específicas. Rajadas de vento, mesmo em boas condições meteorológicas, podem impedir a decolagem e o pouso. Ele afirma, porém, que há a possibilidade de uso sem critério da justificativa.

“Usam esse termo ‘condições meteorológicas’ para tudo, quando na verdade são outros fatores que acabam interferindo.”

NEM TODAS AS ADVERSIDADES CLIMÁTICAS FECHAM AEROPORTO, DIZ ANAC

Em nota, a Anac diz que “nem todas as adversidades climáticas se referem à visibilidade mínima, que é o parâmetro típico para que um aeródromo declare operação abaixo dos mínimos”.

“Condições climáticas adversas abarcam um escopo amplo de incidências climatológicas. Além de chuva forte, são consideradas condições climáticas adversas ventos fortes que possam interferir no equilíbrio da aeronave durante uma manobra de aproximação ou neblinas que prejudiquem a visibilidade, por exemplo”, afirma a agência.

“O próprio impacto da meteorologia em operações é amplamente relativo e dependerá de aspectos como os procedimentos de segurança operacional da empresa e do piloto que comanda o voo, o próprio horário da operação, entre outros. Trata-se, portanto, de um dado complexo e de avaliação metódica”, diz a nota.

A agência não comentou os casos de divergência nas justificativas, por afirmar não ter a atribuição para fiscalizar os motivos de não utilização dos slots.

A Azul afirma que “pousos e decolagens podem ser afetados por uma série de fatores, decisões operacionais da tripulação ou do centro de operações da companhia, seja por ventos fortes, incidência de chuvas, contingenciamento de tráfego aéreo e outros fatores, mesmo que o aeroporto esteja apto e aberto para operações”.

A Latam diz que “a maior parte dos cancelamentos ocorre por questões alheias ao seu controle” e que registrou “95% de regularidade nos voos da ponte aérea” no ano passado.

“Quando uma aeronave é impossibilitada de decolar ou pousar em algum aeroporto por situações alheias ao seu controle, como questões meteorológicas ou de infraestrutura, os demais voos programados para aquela aeronave podem ser impactados em uma espécie de ‘efeito cascata'”, diz a companhia.

A companhia não se posicionou sobre o cancelamento voo 3916 do dia 25 de maio.

A Gol afirma que voos podem ser afetados por um efeito cascata de cancelamentos causados por má condições climáticas em outros aeroportos —motivo não incluído nos códigos 71 e 72, usados no levantamento.

“Os aviões não estão restritos a rotas específicas diariamente, e entram numa escala conhecida como ‘trilho’, utilizando um jargão do setor aéreo. No mesmo dia, as aeronaves, assim como as tripulações, podem atender de dois a sete aeroportos distintos, obedecendo a um trilho previamente planejado. Essa versatilidade, embora valiosa, também significa que condições adversas em qualquer uma dessas localidades pode impactar negativamente as etapas subsequentes da aeronave”, diz a companhia.

A companhia, porém, reconheceu equívoco na atribuição do código 72 para justificar o cancelamento do voo 1031 do dia 29 de março do ano passado. A Gol afirma que ele ocorreu em razão da colisão de uma aeronave com um pássaro em Congonhas, o que levou ao fechamento temporário do aeroporto.

“A Gol salienta que tanto o código 72 (meteorologia adversa no aeroporto de destino) como o 81 (tráfego aéreo) são usados em situações não gerenciáveis pela empresa aérea.”