SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Nos Estados Unidos, jovens, de maioria evangélica, compartilham na rede social de perguntas e respostas Reddit relatos sobre os esforços para superar o “vício em pornografia”. Parte deles bloqueia sites eróticos com aplicativos como Covenant Eyes.

Um usuário diz em resposta a um colega de chat que, para funcionar, é importante encontrar uma pessoa de confiança para prestar contas. Ele se refere à opção disponível nos apps de enviar relatórios com prints de tela para um contato selecionado —em geral, o parceiro ou um amigo próximo.

A ideia é constranger a pessoa que quer parar o consumo de pornografia, para que ela evite conteúdos explícitos. Por isso, esses aplicativos ganharam o nome de “shameware”, algo como programa humilhante.

Mais de 1,5 milhão de usuários já usaram apenas o Covenant Eyes (o mais popular da categoria), segundo imagem de divulgação da empresa disponível na Play Store —são 500 mil downloads na loja do Google e a App Store não divulga quantidade de downloads.

O site do Covenant Eyes indica que o app pode ser usado para homens e mulheres largarem a pornografia. Também funcionaria, conforme a propaganda, para amigos e cônjuges ajudarem seus parceiros ou ainda para “proteger crianças”.

De acordo com o termo de privacidade do aplicativo autodeclarado cristão, o algoritmo captura imagens de tela, borra os textos e envia esse material, criptografado, a servidores da Covenant Eyes, com o propósito de gerar relatórios. O aplicativo também acessa o histórico de navegação do celular ou computador.

Tecnicamente, o Covenant Eyes funciona como um spyware —programa desenvolvido para espionar um alvo. Um exemplo conhecido no Brasil é o Bruno Espião, usado para bisbilhotar celulares sem autorização. No caso do Covenant Eyes, entretanto, ambas as partes precisam consentir.

A OMS (Organização Mundial da Saúde) não classifica o vício em pornografia como uma doença específica. A entidade, entretanto, cita a compulsão sexual em sua lista oficial de desordens de saúde, e a busca descontrolada por conteúdo explícito pode ser um sintoma desse mal, de acordo com o ginecologista e psiquiatra Jairo Bouer.

Ele diz que o medo da exposição a uma pessoa conhecida não é o tratamento padrão ou aconselhável para a compulsão sexual. “Dificilmente um aplicativo vai ser suficiente para superar esse quadro; a pessoa vai precisar de suporte de psiquiatra e talvez de um cuidado terapêutico ou medicamentoso.”

O Covenant Eyes não atendeu à reportagem quando foi procurado via email e pelos telefones informados em seu site.

Como shamewares são invasivos, ainda pode haver abuso de poder de uma das partes ou riscos de segurança de dados envolvidos no uso.

Dois casos recentes nos EUA jogaram os holofotes sobre esses aplicativos supostamente contra a pornografia.

O primeiro envolve o deputado republicano pela Louisiana, Mike Johnson. Ele instalou o aplicativo no celular do filho de 17 anos. Ambos se tornaram aliados um do outro.

Para além da relação de autoridade entre pai e filho, cidadãos americanos foram às redes reclamar de possíveis brechas de segurança no aparelho do parlamentar americano.

Johnson preside a Câmara dos Deputados dos EUA e tem acesso a diversos documentos sensíveis e sigilosos, aos quais a Covenant Eyes pode armazenar em seus servidores.

O segundo caso envolve uma família do estado americano de Indiana. Um homem foi acusado de guardar material de pornografia infantil em seus aparelhos e nega.

Para aguardar pelo julgamento em liberdade, ele e sua família aceitaram a proposta da procuradoria que envolvia instalar o aplicativo Covenant Eyes no celular de todos os familiares, de acordo com reportagem da Wired.

Nesta situação, a esposa, a mãe e os filhos do acusado ficaram sob a vigilância de dois procuradores de Indiana, eleitos “aliados” no Covenant Eyes. A mulher diz que não se sente segura para comunicar com os advogados via mensagem e que as autoridades têm acesso às compras de lingerie de sua sogra, de 80 anos.

Esse uso por parte da Justiça americana contrariou os termos de uso do próprio aplicativo, que proíbem usar dados colhidos com o Covenant Eyes para fazer denúncias formais.

Para a diretora de cibersegurança da Eletronic Frontier Foundation, Eva Galperin, o consentimento envolvido no uso de shameware pode ser relativo. “Se a pessoa for a um médico e pedir para ele tirar a roupa, ele provavelmente vai negar, embora seja comum aceitar se despir no consultório.”

Essa dinâmica se repete em comunidades cristãs, quando um pastor orienta seus fiéis a usarem aplicativos como o Covenant Eyes, de acordo com Eva.

Em entrevista à reportagem, o pastor da Primeira Igreja Presbiteriana Independente de SP Valdinei Ferreira afirmou que existe entre as famílias evangélicas uma grande preocupação em relação aos riscos a que jovens estão expostos na internet. Ao mesmo tempo, há também uma cultura de vigilância e de “recriminação do pecado”.

“Antes usar a internet era uma experiência coletiva, o computador ficava no meio da sala ou em uma lan house, o que dificultava acesso a pornografia e também o contato com pessoas mal-intencionadas”, diz Ferreira.

Segundo o pastor, é comum que pais e mães recorram a aplicativos de controle parental, que permitem que os pais acompanhem a atividade dos filhos ou mesmo bloqueiem o acesso a certos conteúdos —pornografia, inclusive. Isso também ocorre entre marido e mulher.

O Covenant Eyes produz e divulga estatísticas que podem reforçar esses medos. Sem divulgar a fonte, o blog do aplicativo diz que 56% dos divórcios entre pessoas cristãs é motivado por “uma das partes ter interesse obsessivo em sites pornográficos”.

Bouer afirma, porém, que “a esmagadora maioria das pessoas faz um consumo saudável e eventual de pornografia”.

Para saber se sofre de compulsão sexual, Bouer recomenda que a pessoa procure o auxílio de um profissional. “É difícil distinguir se alguém tem um desejo sexual exacerbado ou se esse comportamento passou a ser uma compulsão.”