SÃO CARLOS, SP (FOLHAPRESS) – O sistema de circulação de água dos oceanos que ajuda a manter boa parte da estabilidade do clima global está ficando cada vez mais vulnerável. E corre risco de ser “desligado” caso a temperatura da Terra continue aumentando, alerta um estudo assinado por cientistas holandeses.

A pesquisa, publicada recentemente na revista especializada Science Advances, não chega a apontar datas para o colapso, mas estima quais seriam os sinais cuja presença pode indicar o “ponto de virada” nas atuais correntes marinhas.

Uma mudança nessa escala teria efeitos severos sobre diferentes regiões e ecossistemas. Entre as consequências do fenômeno previstas pela equipe da Universidade de Utrecht estão quedas bruscas da temperatura média da Europa, com uma diminuição de mais de 1°C por década.

Em algumas cidades do noroeste do continente, o resfriamento, no fim das contas poderia ficar entre 5°C e 15°C a menos. Em outras palavras, seria como se Londres ou Paris fossem transportadas para o Ártico.

Ao mesmo tempo, a transformação teria efeitos também sobre os trópicos, com a possibilidade de uma “troca” entre as atuais estações úmida e seca na Amazônia —elas passariam a acontecer em épocas invertidas do ano. Uma alteração ambiental tão profunda e rápida, na escala de décadas, seria um desafio tremendo para a biodiversidade da região, que teria muita dificuldade para se adaptar a ela.

O trabalho, coordenado por René van Westen, do Instituto de Pesquisa Marinha e Atmosférica da universidade holandesa, combinou dados atuais sobre o derretimento de geleiras mundo afora com uma sofisticada simulação computacional do clima da Terra ao longo do tempo. O objetivo era simular cenários futuros para o fenômeno designado pela sigla inglesa Amoc (“circulação meridional invertida do Atlântico”).

Os efeitos de um desligamento da Amoc já foram até dramatizados no filme-catástrofe “O Dia Depois de Amanhã”, de 2004, estrelado por Dennis Quaid e Jake Gyllenhaal, com bilheteria de mais de meio bilhão de dólares.

Na trama, boa parte do hemisfério Norte, incluindo a cidade de Nova York, onde estão alguns dos personagens da trama, fica congelada de uma hora para outra graças a uma série de supertempestades.

Vale dizer que mesmo a versão mais catastrófica do processo no mundo real jamais teria efeitos quase instantâneos: a mudança levaria décadas, o que já seria extremamente rápido do ponto de vista do sistema climático da Terra.

Vários outros pesquisadores já mostraram preocupação com o que vai acontecer com a Amoc, cuja presença e intensidade atuais estão entre as grandes responsáveis pelo clima relativamente ameno da Europa Ocidental, entre outras coisas.

Para funcionar, a Amoc depende do equilíbrio entre a temperatura e a salinidade das massas de água que circulam pelo oceano. De modo geral, assim como acontece com o ar, a água mais quente, menos densa, tende a subir, enquanto a água fria, mais densa, afunda.

O teor de sal da água também influencia a densidade, que aumenta se a água é mais salgada e diminui se ela é menos salgada.

Essa variação de condições da água do mar, que depende também da temperatura da atmosfera, acaba produzindo um grande circuito aquático no oceano Atlântico, levando água quente rumo ao norte e água fria rumo ao sul.

O problema é que, com a crise climática causada pela ação humana, o Atlântico tem recebido cada vez mais um aporte extra de água doce, vinda principalmente do derretimento de geleiras, como as da Groenlândia. E, como o equilíbrio de salinidade é um dos fatores cruciais para o funcionamento da Amoc, é natural imaginar que a circulação pode ser afetada ou mesmo “desligada” por esse fenômeno.

Foi isso o que a análise computacional conduzida pelos cientistas da Universidade de Utrecht mostrou — o colapso é, de fato, uma possibilidade, e há indícios preocupantes de que estamos nos aproximando do ponto de virada.

Além disso, a equipe identificou que medições das condições de água realizadas a 34 graus de latitude Sul —mais ou menos na altura de Buenos Aires— poderiam ser um bom indicativo de quão próximos estamos desse desligamento.

“Nesse local, as medições ajudam a medir quanta água doce está entrando no oceano Atlântico e até que ponto ela está desestabilizando a Amoc”, explicou René van Westen à Folha de S.Paulo.

“Com base nos resultados do nosso modelo climático, há um valor crítico para o transporte de água doce nessa latitude. Enquanto esse valor não for ultrapassado, a Amoc ainda continua fluindo em seu estado atual. Se ele for cruzado, temos uma indicação de que um colapso abrupto da Amoc virá logo a seguir”, conclui ele.

A única maneira de enfrentar o risco, como, de resto, para muitas outras dimensões da crise climática, é reduzir significativamente as emissões de gases causadores do aquecimento global.