SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Um dos mais importantes pensadores do mundo, o camaronês Achille Mbembe, de 66 anos, rejeita simplificações ao falar sobre as ruínas da geopolítica contemporânea.

Ele recorre à cosmogonia africana, com alegorias e imagens poéticas, para profetizar a invenção de um futuro, oposto ao tempo presente, desmantelado pelas bombas que caem a cada minuto sobre Gaza e que está ameaçado pelas mudanças climáticas e pelo uso de novas tecnologias.

Mbembe anuncia a falência da hegemonia ocidental, criticando o modelo socioeconômico dominante no século 21. “Creio que o neoliberalismo é incompatível com a democracia liberal”, diz.

Professor de história e ciências políticas da Universidade de Witwatersrand, em Joanesburgo, na África do Sul, Mbembe é autor de livros fundamentais para a teoria decolonial, como “Crítica da Razão Negra” e “Necropolítica”, ambos publicados no Brasil há seis anos.

Por aqui, seu pensamento logo se espraiou na academia e na imprensa, se tornando uma chave para a compreensão dos dilemas históricos da sociedade brasileira.

O conceito de necropolítica faz referência ao poder das forças opressivas do Estado em decidir quem deve viver e quem deve morrer. No livro, Mbembe traça um panorama histórico, mostrando como a morte sempre permeou o cotidiano do povo negro.

Ele lembra a exploração escravista no sistema de “plantation” e usa a Palestina como um dos exemplos de necropolítica da atualidade. Seu progressismo, no entanto, se retrai quando indagado sobre uma possível solução de dois Estados. “O que você quer que eu diga? Minha voz não conta nessas questões. Essa questão me ultrapassa. Essa pergunta deve ser feita aos poderosos do mundo”, afirma.

De todo modo, o conceito de necropolítica não é impróprio ao que acontece nas periferias daqui. Um estudo do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em parceria com a UNICEF, aponta que 80% das mortes violentas de jovens, entre 2016 e 2020, eram de negros. Decerto, é um apagamento que se estende a subjetividades das relações raciais.

Em “Crítica da Razão Negra”, Mbembe descreve um processo de questionamento à centralidade do pensamento branco, sobretudo europeu, nas ciências humanas e nas representações artísticas.

Nesta segunda-feira, Mbembe dará uma aula-magna, que integra a programação da Mostra Internacional de Teatro de São Paulo, a MITsp. Na entrevista a seguir, concedida por videoconferência, ele fala sobre o tema de sua aula, as relações entre democracia e internet, discorre sobre a identidade do Brasil, país que se reconhece a cada dia mais negro, e sobre a violência das guerras.

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PERGUNTA – Como o uso das redes sociais pode afetar a democracia?

ACHILLE MBEMBE – Acho que há uma enorme tensão entre a democracia e as redes sociais. Primeiro, porque o neoliberalismo é incompatível com a democracia liberal. E ainda há outra tensão, que devemos perceber, a necessidade de democratizar esse acesso a todas essas ferramentas de tecnologia.

P – Em que medida o senhor pensa ser necessário cada país reparar as suas legislações, a fim de evitar a disseminação de fake news em sites de big techs?

AM – Penso que essa não é uma discussão que deve ser resolvida unicamente no plano nacional. As fronteiras dessas empresas estão em todos os lugares e não podem ser enquadradas de acordo com a noção de Estado-nação. Penso que é preciso existir uma regulação transnacional, mas isso é muito complicado. As forças do mercado tendem a se autonomizar em relação às forças políticas.

P – Em sua obra, o senhor cita o exemplo da Palestina como um exemplo de necropolítica. Como avalia a situação em Gaza neste momento?

AM – Aqui, o governo da África do Sul foi até Haia exigir um cessar-fogo. Temos a experiência do apartheid, que foi totalmente singular, mas mostrou que o direito à vingança não nos conduz exatamente à paz. A experiência sul-africana pode ser significativa para mostrar que os conflitos aparentemente intratáveis podem ter uma solução.

P – O senhor defende a solução de dois Estados?

AM – O que você quer que eu diga? Minha voz não conta nessas questões. Essa questão me ultrapassa. Essa pergunta deve ser feita aos poderosos do mundo.

P – De que modo a ocupação de um território é central para o exercício da necropolítica?

AM – Nossas vidas estão ligadas a um território. Para viver e existir, é preciso ter os pés em um solo. O território é o cordão umbilical, que nos liga à memória e ao futuro. Se estamos presos em um território, estamos impedidos de construir uma memória ou até mesmo reconhecermos nosso próprio nome.

P – Até que ponto o conceito de necropolítica explica a violência contra os jovens negros no Brasil?

AM – É a maneira como lidamos com a vida. É preciso que o valor das vidas seja igual. E não falo só das vidas humanas. Falo dos animais e da natureza, ela própria. Venho da África e estou atento à cosmogonia. Para a população negra brasileira, creio que a necropolítica se traduz num sentimento de impossibilidade de se tornar ancestral.

P – Pouco a pouco, a população brasileira reconhece sua identidade negra. Por que tanta dificuldade histórica nesse reconhecimento?

AM – Porque o significante “negro”, na história da modernidade, sempre foi o equivalente a nada. As pessoas não querem ser nada. As pessoas querem ser alguma coisa. A ideia de ser negro provoca muito medo nas pessoas.

P – A miscigenação é necessariamente negativa?

AM – Não, mas a miscigenação histórica é resultado da violência, não da harmonia. A miscigenação é o símbolo do encontro e os encontros sempre tiveram de ser negociados e devem ser construídos para o futuro. A melhor construção é aquela que se desenvolve numa base de igualdade, não sob o signo do estupro.

P – Em “Crítica da Razão Negra”, o senhor discorre sobre a representação artística. De que maneira devemos lidar com uma herança artística que vê o negro como exótico?

AM – Não devemos apagar nada. Entretanto, devemos olhar tudo com novos olhos. Isso exige recontextualizar as expressões artísticas. É preciso, portanto, sempre desconfiar das nossas faculdades críticas. Penso que uma das funções da arte contemporânea é abrir os nossos sentidos. A prática artística deve reencontrar sua função libertadora.