SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Perto de completar 75 anos, José Benedito Franco de Godoi pediu a palavra para agradecer a presença de seus pares. Era a última sessão do desembargador no TJ-SP (Tribunal de Justiça de São Paulo).

“Tirar a amizade da vida é tirar o sol do universo”, discursou, em citação ao escritor, filósofo, poeta, advogado e político romano Marco Túlio Cícero. Disse também que pretendia, a partir daquele momento, estudar.

Não demorou a começarem as especulações sobre quem seria o substituto. Franco de Godoi abria uma rara cadeira em lugar que advogados acostumados ao tribunal, ouvidos pela Folha, consideram a joia da coroa do Judiciário: as Câmaras Reservadas de Direito Empresarial.

São dez desembargadores (em um universo de 356 que atuam no TJ-SP) que tratam de disputas empresariais, às vezes bilionárias. Julgam recuperações judiciais, falências e brigas acionárias. A mais rumorosa delas no país, no momento, tinha Franco de Godoi como relator: o pedido de anulação da arbitragem na contenda entre J&F e Paper Excellence. As duas aspiram ao controle acionário da Eldorado Celulose.

Enquanto ele discursava em sua despedida, já acontecia a discussão sobre quem o substituiria. Um dos nomes comentados foi o de Tasso Duarte de Melo.

A aposentadoria de um desembargador tem o poder de embaralhar processos já encaminhados ou quase definidos. Nas duas câmaras empresariais, companhias disputam milhões, pedem recuperações judiciais ou podem ter falência decretada.

A briga entre J&F e Paper se arrasta desde 2018 e o pedido de anulação da arbitragem (que declarou a Paper vitoriosa) faz parte de um tabuleiro de xadrez pelas ações da Eldorado. O dinheiro para concluir a compra está em um fundo de investimento administrado pelo Itaú. O valor aplicado hoje em dia está em R$ 8,6 bilhões.

Outro campo de batalha está na posse de terras. O Incra recomendou que o negócio seja desfeito porque uma empresa estrangeira seria dona ou arrendatária de mais terras do que o permitido por lei. Nesta quarta-feira (7), o MPF (Ministério Público Federal) solicitou à 1ª Vara Federal de Três Lagoas (MS) a anulação do acordo assinado em 2017.

De acordo com advogados e ex-desembargadores ouvidos pela reportagem, é difícil que as empresas consigam influir na escolha de quem vai para a Câmara Empresarial, mas isso não as impede de se informar sobre os perfis de diferentes nomes. Informações de como votaram em ações anteriores, que tipos de sentença deram e qual o seu modo de pensar são valiosas.

Segundo um ex-desembargador, há “intermediários”, gente que jura conseguir influir no processo, mas faz apenas uma promessa que não tem como cumprir.

A versão paulista é o maior tribunal de Justiça do país. São 19,3 milhões de ações em andamento em 1º grau, o que representa 27% do total de processos em tramitação no Brasil. O total de magistrados é de 2.522, espalhados em 1.570 varas e 320 comarcas. O orçamento para este ano é estimado em R$ 15,9 bilhões.

As duas câmaras empresariais, com cinco desembargadores cada, são consideradas joias da coroa porque seus integrantes recebem atenção às vezes indesejada. Isso por causa da importância e do valor das causas. Eles também analisam menos recursos do que seus pares em outras áreas do TJ. Estas podem chegar a dez por mês, enquanto em outras câmaras, estimam advogados, o número é de 50 por semana.

A quantidade de apelações distribuídas entre os dez desembargadores, no final de 2023, era de 4.499.

Para juízes que passaram pelo TJ-SP e advogados, é um cargo que pode ser desafiador e exasperante ao mesmo tempo.

São processos que costumam envolver muitos advogados, pedidos de audiência quase diários e solicitações variadas, às vezes feitas por diferentes escritórios que defendem a mesma empresa, e pedidos de liminares. As petições são gigantescas. Um ex-desembargador afirmou à reportagem sentir que seus votos eram analisados com lentes de lupa pelas partes, sempre em busca de um erro ou contradição no voto dado.

Os advogados, segundo ele, são sempre de alto nível. Daqueles que recebem por hora e em dólar. Os pareceres apresentados pelas empresas também costumam ser escritos por professores renomados do Direito brasileiro.

Tudo isso faz parte do desafio de estar ali: dar um parecer que não possa ser contestado.

Mas o desgaste cobra o preço e, entre as pessoas entrevistadas, a conclusão foi que é preciso gostar muito da matéria para postular a vaga.

Há recompensas. Uma delas é o prestígio que o posto carrega, o que pode ser útil após a aposentadoria. Eles costumam ser cobiçados por grandes escritórios de advocacia e seus pareceres privados carregam relevância.

Apenas na contenda pela Eldorado, há seis ex-desembargadores que assinam documentos para a J&F e um para a Paper. A conclusão é oferecem peso aos argumentos da companhia pelo simples fato de que estiveram na Câmara de Direito Empresarial ou Privado.

É como se a passagem pelo cargo fosse uma aposta no futuro da carreira.

Quem passou pela câmara lembra que há pressão, o trabalho é complexo e o salário é o mesmo de qualquer outro desembargador nomeado para outra câmara. Mas não é pouco dinheiro.

A remuneração básica é de R$ 37.589,95. Há rubricas como vantagens pessoais, vantagens eventuais e gratificações que podem mais do que dobrar o salário. O de Franco de Godoi, segundo as informações públicas no site do TJSP, em outubro do ano passado, foi de R$ 86.674,74. Não era o maior. O desembargador Abnen Athar de Paiva Coutinho, da 11ª Câmara de Direito Criminal, recebeu R$ 118.172,79.

Para ser escolhido, é preciso fazer campanha interna. A vaga é preenchida por eleição em que votam os 25 integrantes do órgão especial do Tribunal de Justiça. O desembargador que cobiçá-la precisa se apresentar a cada um e avisar ser candidato. Ele pode representar um grupo de magistrados que compartilham sua visão de mundo. Há o relacionamento social entre todos eles, o que pode servir como lobby informal. Como se fosse a política de um clube fechado para poucos.

Em caso de empate (o que é possível, se ocorrerem abstenções), é escolhido o mais antigo no tribunal.

A votação pode ser acirrada. O desembargador Natan Zelinschi Arruda foi eleito em 2022 para a 2ª Câmara Empresarial pelo critério da antiguidade. Ele empatou com Pedro Luiz Baccarat da Silva em 11 votos.

Mesmo a candidatura pode não ser espontânea, o que mostra a questão política no tribunal principalmente quando se trata de julgar disputas entre empresas. Um desembargador foi estimulado a postular a vaga por integrantes do órgão especial. Eles queriam a eleição de um juiz de carreira.

O risco era que a câmara empresarial ficasse com maioria de magistrados egressos da advocacia ou do Ministério Público. Cada grupo tem 20% das vagas no tribunal por determinação constitucional. O interesse do TJ era que o número mais expressivo fosse de juízes de carreira.

O burburinho quando alguém se aposenta naquela câmara é pelas causas que pode assumir. Franco de Godoi, por exemplo, havia dado um voto a favor da Paper ao recusar a anulação da arbitragem e determinar a transferência das ações para a companhia de origem canadense. Quem entrar em seu lugar abre um novo flanco de luta para a J&F.

Até que ponto o processo pode ser tumultuado é algo que não é consenso entre os entrevistados pela Folha.

Para a maioria, o novo desembargador não mudaria o voto dado por Godoi porque isso é a tradição do tribunal. Mas daria possibilidade a diferentes embargos de declaração, um expediente para dirimir dúvidas, contradições ou omissões que paralisa processo e prazos.

Mas houve quem citasse que esta tradição é do STF (Supremo Tribunal Federal), não do TJ-SP. E lembra que o artigo 72 do regimento interno do tribunal pode representar uma fresta, dependendo da interpretação, para o pedido de anulação dos votos e reinício do processo. O texto diz que em caso de afastamento definitivo de um desembargador relator do caso, os “remanescentes” [o que resta da ação] devem ser redistribuídos ao revisor ou segundo juiz.