A Suprema Corte dos EUA decidiu nesta quinta (29) que as universidades americanas não podem utilizar a raça dos candidatos em processos de admissão, encerrando assim as políticas de ações afirmativas para incentivar o ingresso de minorias raciais no ensino superior.
A decisão reverte entendimentos anteriores do mesmo tribunal, em mais um reflexo da atual composição da corte, de maioria conservadora.
Trata-se da segunda vez em um ano que o colegiado altera políticas sensíveis -em junho de 2022, a corte mudou entendimento de quase 50 anos e passou a considerar o acesso ao aborto inconstitucional.
Embora cotas raciais sejam proibidas nos EUA, era possível, na maioria dos estados, criar formas de estimular a entrada de estudantes negros e hispânicos. A decisão desta quinta foi tomada após ações movidas contra as universidades Harvard e da Carolina do Norte, acusadas de discriminar alunos brancos e de ascendência asiática em favor de negros, hispânicos e indígenas -o que as instituições negam.
Os casos foram impetrados pela SFFA (estudantes pela admissão justa, na sigla em inglês), que afirma representar 20 mil estudantes e pais. A entidade foi criada pelo estrategista conservador Edward Blum, que questiona esse tipo de medida desde a década de 1990.
“Muitas universidades concluíram erroneamente por muito tempo que o critério de avaliação da identidade de um indivíduo não são os desafios superados, as habilidades construídas ou as lições aprendidas, mas a cor de sua pele. A história constitucional desta nação não tolera essa escolha”, escreveu o presidente da Suprema Corte, John Roberts.
“Ao mesmo tempo, como todas as partes concordam, nada neste parecer deve ser interpretado como algo que proíba universidades de considerar como a raça afetou a vida de um candidato, seja por discriminação, inspiração ou de outra forma”, afirmou o magistrado, em ressalva.
Clarence Thomas, único homem negro do tribunal e o mais conservador dos atuais juízes, também votou a favor do fim das ações afirmativas. Já a juíza Ketanji Brown Jackson, a primeira mulher negra a chegar à Suprema Corte, discordou da maioria e chamou a decisão de “uma verdadeira tragédia para todos” -no caso referente a Harvard Jackson se absteve de votar por já ter sido membro do conselho da universidade.
Em comunicado, Kevin Guskiewicz, administrador da Universidade da Carolina do Norte, afirmou que vai cumprir a decisão, ainda que o resultado não seja o esperado, e que a instituição “continua firmemente comprometida em reunir estudantes talentosos com diferentes perspectivas e experiências de vida”.
Harvard, também por meio de nota, afirmou que irá, “com base no talento e na experiência de nossa comunidade, determinar como preservar, segundo o novo precedente da corte, nossos valores essenciais”.
A decisão provocou ampla reação, a começar pelo presidente Joe Biden, que se disse “fortemente desapontado” com algo que “retrocede décadas de precedentes legais”. “O preconceito ainda existe nos EUA e não vai mudar com essa decisão”, afirmou ele, para quem a atual Suprema Corte “não é um tribunal normal”. Candidato democrata à reeleição no ano que vem, Biden disse que vai colocar o Departamento de Educação para analisar e sugerir práticas que aumentem a diversidade no ensino superior.
Outro pré-candidato a se pronunciar foi o ex-presidente Donald Trump, que definiu a decisão como “um grande dia”, porque “pessoas com habilidades extraordinárias estão finalmente sendo recompensadas”, o que “manterá o país competitivo em relação ao resto do mundo”. “Estamos voltando a [decidir] tudo com base no mérito -e é assim que deve ser.” Outros candidatos republicanos também elogiaram a medida.
Para o ex-presidente Barack Obama, “as ações afirmativas, como qualquer política, não eram perfeitas, mas permitiram que gerações de estudantes como Michelle [Obama, ex-primeira-dama] e eu provassem que pertenciam [a esses lugares]”. A ex-primeira dama publicou nota relembrando a experiência como uma das poucas estudantes negras na universidade. “Meu coração está partido por todo jovem que hoje se pergunta o que o futuro reserva”, escreveu.
“Precisamos nos lembrar de trabalhar para criar políticas que reflitam nossos valores de igualdade e justiça e fazer com que eles sejam aplicados.”
A decisão desta quinta deve mudar de maneira expressiva a composição das universidades americanas.
Hoje, nove estados já impedem o uso de ações afirmativas a partir de leis ou decisões judiciais locais. Em 2006, referendo aprovado por 58% da população de Michigan proibiu o uso de raça, gênero e religião em processos seletivos de universidades e de empregos, numa mudança com impacto imediato no perfil demográfico dos universitários no estado.
Antes, a Universidade de Michigan tinha cerca de 8% de alunos negros, e hoje tem 2,5%. O número de alunos hispânicos, porém, permaneceu similar.
À reportagem Erica Sanders, diretora-executiva de admissão de graduandos da instituição, disse que a universidade passou a adotar políticas baseadas em classe social, com “campanhas de recrutamento em locais com populações historicamente sub-representadas, focando alunos de baixa renda e cujos pais não têm graduação, mesmo sabendo que isso não necessariamente se sobrepõe a critérios de raça.”
Na Califórnia, primeiro estado a proibir ações do tipo, em 1996, os censos reforçam o embranquecimento das universidades. Já os argumentos contrários à política incluem, além de uma suposta discriminação a alunos brancos, a falta de perspectiva para o fim dessas ações, usadas no país desde os anos 1960.
A maioria dos americanos se disse favorável à manutenção das ações afirmativas, segundo pesquisa da Associated Press e da Universidade de Chicago divulgada no fim de maio. Ao todo, 63% dos entrevistados defendiam que a Suprema Corte não proibisse o mecanismo nos sistemas de admissão.
Apesar disso, entre os pontos que devem ser considerados importantes para as universidades aceitarem novos alunos, os americanos citaram como critérios mais relevantes do que a raça o histórico escolar, o desempenho no vestibular, a capacidade de pagar o curso e as habilidades esportivas.
No Brasil, lei de 2012 que reserva metade das vagas em instituições federais para cotas (divididas entre critérios raciais e sociais) já teve sua constitucionalidade confirmada pelo Supremo Tribunal Federal.
Enquanto a maioria das universidades brasileiras usa apenas o vestibular como critério, as americanas podem utilizar, além de uma prova, o histórico escolar e cartas de apresentação e recomendação. Assim, é comum que o processo seja menos objetivo, sobretudo porque muitas não divulgam seus métodos.
O uso de ações afirmativas remonta à luta pelos direitos civis, primeiro como uma maneira de impedir que minorias raciais fossem excluídas do mercado de trabalho. Decreto de John Kennedy em 1961 dizia que empresas com contratos com o governo federal deveriam adotar “ações afirmativas para garantir que os candidatos sejam tratados igualmente, sem distinção de raça, cor, religião, sexo ou origem nacional”.
Em 1978, porém, a Suprema Corte considerou ilegais as cotas para minorias raciais ao analisar um caso da Universidade da Califórnia em Davis, que havia reservado 16 de 100 vagas de medicina para grupos minoritários. A mesma decisão, porém, considerou legítimas ações que levavam a raça em conta para admitir alunos. Decisões posteriores confirmaram a legalidade da medida, ainda que com restrições.
Trinta e cinco anos depois, em 2003, um novo caso em Michigan levou a discussão novamente à mais alta instância da Justiça americana. O colegiado, à época, manteve o entendimento vigente. Em 2016, outra decisão da Suprema Corte considerou constitucional o uso de ações afirmativas.
Nos Estados Unidos, 75,5% da população se declara branca, 13,6% se diz negra, e 6,3%, asiática. Os hispânicos (que podem incluir também negros e brancos) são 19,1%. Para efeitos de comparação, no Brasil 43% se dizem brancos, e 56%, negros -entre os negros, 47% se declaram pardos, e 9,1%, pretos.