Aos 50 anos, Seu Jorge começou a fazer terapia. Foi no início do ano, quando sua filha Flor sentiu a tristeza do pai e sugeriu que conversasse com alguém. A primeira reação dele diante da ideia foi de resistência (“disse a ela: ‘sou um cara rústico, filha, terapia de negão é candomblé”, brinca). Meses depois, já com 51, colhe os frutos do processo. Apaziguou a crise de meia idade e a estafa.
Questões não faltam para alguém que viu o irmão ser assassinado e sofreu com o racismo. Nem para o artista bem-sucedido, porém polêmico, envolvido em processos de plágios e autor de críticas sobre o Brasil que nem sempre pegaram bem por aqui. Desde 2013 Jorge mora na Califórnia, perto das três filhas.
Agora, se reconecta com o Brasil pelo cinema. O artista vive um boom como ator. No próximo dia 4, estreia como protagonista de “Marighella” e, no dia 11, surge no papel-título de “Pixinguinha, um homem carinhoso”. Acaba de rodar “Asteroid City”, de Wes Andersen, e está em “Medida provisória”, de Lázaro Ramos. Na mundo da música, segue com a turnê “Irmãos”, ao lado de Alexandre Pires, e prepara um show em homenagem a Legião Urbana.
Marighella viu muitos amigos serem assassinados. Você, um irmão. Essa dor te aproximou do personagem?
Tenho esse drama na vida, que é o de muitas famílias negras brasileiras que perdem seus jovens. É uma dor profunda e está na minha experiência. Mas meu encontro com Marighella é na negritude. Penso em toda a nossa ancestralidade.
Como é ser pai de três meninas? O que tem aprendido com elas?
É outra cabeça, né? Tenho que mexer em muita coisa. No início do ano, eu estava somatizado. Aí, a Flor me olhou e falou: “Você está triste, tem que conversar com alguém”. E eu: “Filha, sou um cara rústico. Terapia de negão é candomblé. Tenho minhas questões como homem negro de 50 anos, não dá para conversar com um terapeuta que não seja negro. Passaram uns dias, me ligou um terapeuta maneirão, negrão assim. Estamos fazendo um trabalho maravilhoso.
Você enfrenta um processo na Justiça da família de Mário Lago por causa do uso de “Ai que saudade da Amélia” sem autorização na canção “Mania de peitão”, e outro, de músicos que te acusam de plágio em músicas como “Carolina” e “Tive razão”. Como encara esses imbróglios?
O lance do Mário foi que o produtor era francês, foi dito para botar o nome e ele não botou. A família reclamou, a editora fez a reparação, mas voltaram com a história. Não tenho intenção de me apropriar de “Amélia”. Era uma homenagem. Os outros reivindicam parcerias do que nunca fizeram. Deixo com o jurídico.
Há também uma acusação de plágio contra você de músicas como “Carolina” e “Tive razão” por parte de dois músicos…
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Sim, eles reivindicaram parcerias de coisas que nunca fizeram, nunca participaram. Eu não tomo conta disso, deixo com o jurídico. Faz anos que isso existe e continua correndo na Justiça.
Voltando ao cinema… A diretora de “Pixinguinha, um homem carinhoso”, Denise Saraceni, diz que, talvez, a dificuldade em captar recursos para o filme tenha a ver com o fato de ainda sermos um país racista. Acha que é por aí?
Temos dificuldade em preservar nossa memória. Recentemente, “Carinhoso” fez 100 anos. Até hoje, reflete a nossa cara. Pixinguinha é a espinha dorsal da música popular brasileira. Acho que quando a gente entender que nossas histórias têm um valor enorme e que nosso jeito de contá-las é bonito, poderemos melhorar isso. Que o cinema de arte vai ter mais espaço na medida em que o público brasileiro tiver mais contato com a beleza da sua própria história.
É necessário investir na história de pessoas que alicerçaram nossa cultura. Pixinguinha, Villa-Lobos, João Gilberto, Tom Jobim, que sempre se preocuparam em fazer parte de algo original da gente, que levaram isso para o mundo. Pixinguinha, com os Oito Batutas, encantou a França, fez amizade com Louis Armstrong, que, naquele momento também surgia com o jazz em New Orleans. Pixinguinha falava: “Ele sofre muito. Depois do pós-guerra, o jazz dele era como o choro da gente, um lamento também”. Essa relação que a música brasileira tem, de fazer esse intercâmbio, é muito antiga.
Foi bonito me aproximar dessa história, que é a de um cara sem conflito nenhum. Caçula de uma família com muitas mulheres, que lhe cuidaram, lhe deram doçura. E ele viveu do lúdico, de imitar passarinho com a flauta. Quando foi assaltado, disse: “Que isso, vamos lá pra casa comer um negócio”, e levou o assaltante pra casa.
Vivi Pixinguinha, Marighella, Mané Galinha (em “Cidade de Deus”), o pai do Pelé (em “Pelé, o nascimento de uma lenda”). Um cara que prometeu aos 8 anos de idade que ganharia a Copa do Brasil porque viu o pai chorando no Maracanazzo. E, com 17 anos, ele ganha.
Quando eu nasci, em 1970, o Brasil era uma festa. Minha mãe acreditava que, se o Pelé me visse, ia me passar uma energia. Então, tocou para a Presidente Vargas comigo no colo. Ia ter o desfile da seleção no carro dos Bombeiros. Chuviscava, eu com dias de nascido, e vinha o Pelé acenando. Minha mãe esperando. Quando ela ia me levantar, o Pelé virou para o outro lado. Bicho, ela ficou uma arara com ele (risos). Naquele momento, todas as mães pretas acreditavam que, se tivessem um filho preto, ia ser igual ao Pelé. São histórias assim que me pegam, é onde me encontro com a negritude.
Eu tinha 17 anos e trabalhava no Cartão Nacional, do extinto Banco Nacional. Tinha cartão de crédito, talão de cheque, ganhava mais que meu pai e minha mãe. Era aquele velho sonho do contínuo que vai virar gerente, o orgulho da família. Um dia, recebi o pagamento e fui sozinho para o Cine Odeon, na Cinelândia. Assisti ao filme “Remo – desarmado e perigoso”, de ação, o personagem desviava das balas… Eu morava no Gogó da Ema (Belford Roxo). Não tinha nada na minha área e aquelas luzes da Cinelândia me enfeitiçavam. Lembro de estar voltando pra casa no ônibus, sempre naquela coisa de torcer para ter lugar vazio na janela, porque, aí, eu sentava, ficava olhando lá para fora e ninguém achava que eu ia roubar… Mas nessa de eu estar no ônibus lembro de pensar: “Como esses caras fazem cinema? Imagina eu ali?”.
Corta para hoje e eu estou aqui, convesando com você sobre os filmes. É muito foda, cara (Seu Jorge se emociona)!
Em “Pixinginha, um homem carinhoso” é legal ver músicos como você, Nilze Carvalho, Maíra Freitas e Pretinho da Serrinha tocando de verdade…
A música cantou ali, sabe? A gente tinha orgulho de fazer parte daquilo, de tocar verdadeiras obras primas. Tinha um sabor único mexer nesse material honrado demais. Quantos músicos queriam estar imortalizando aquele repertório? Olha só o lugar do cinema…