O ano é 2030. São 2,1 bilhões de toneladas de comida perdidas ou desperdiçadas, totalizando prejuízo financeiro de US$ 1,5 trilhão. A projeção é do Boston Consulting Group em estudo sobre a perda e desperdício mundial de alimentos. O primeiro item ocorre na cadeia produtiva, da colheita ao escoamento dos produtos. O segundo, nos níveis de varejo e consumo.
O desperdício carrega todos os impactos ambientais da produção de alimentos – o uso intensivo, poluição da terra e dos recursos hídricos e emissão de gases – sem nenhum dos benefícios de alimentar as pessoas. Se fosse um país, seria o terceiro maior emissor. Apesar de constantemente associado à questão da fome e insegurança alimentar, também é um dos pilares da crise climática global.
Na COP27, a pauta dos sistemas alimentares ganha destaque pela primeira vez, em dois espaço, o Food Systems Pavillion e o Food4Climate Pavillion, para os debates sobre comida e clima. Nesta terça-feira (15) foi anunciado na COP27 o lançamento do #123Pledge, iniciativa da coalizão “Food is never waste”, compromisso referente à terceira meta do Objetivo de Desenvolvimento Sustentável (ODS) 12, que determina a redução do desperdício em 50% até 2030. Ele busca engajar empresas, cidades e países em ações de mitigação do desperdício de alimento nos próximos oito anos.
“É uma chamada para ação de compromissos com bastante foco, e que vão contribuir para reduzir a perda ou desperdício”, explica Gustavo Porpino, analista da Embrapa Alimentos e Territórios e representante brasileiro na coalizão “Food is never waste”. “Por exemplo, uma indústria brasileira topar ajudar a reduzir em até 25% o desperdício de laticínios no país”.
Para viabilizar a redução, é necessário compreender que todo o trajeto da comida, desde o cultivo no campo até a mesa dos consumidores, sofre com perda ou desperdício. No enfrentamento dessa realidade, Porpino identifica que o primeiro passo é mapear os pontos críticos da cadeia produtiva no Brasil. Em seguida, quantificar perdas ou desperdícios no meio dela, estabelecer metas e agir para reduzir. E quais são as etapas dessa produção?
Começa no campo, dentro das porteiras, onde a perda de alimentos decorre de questões básicas como o manejo equivocado ou uma colheita malfeita que danifica as frutas, por exemplo. Porpino ressalta a importância da capacitação e incentivo tecnológico para pequenos e médios produtores rurais, além da ampliação do acesso deles aos mercados. O fortalecimento da agricultura familiar em cinturões verdes das cidades pode ajudar na diminuição da perda. “Se cidades e estados, de fato, compram parte dos alimentos para alimentação escolar ou para hospitais públicos da agricultura familiar próxima, o desperdício é reduzido porque ajuda a fortalecer pequenos circuitos de produção e consumo, evitando que os alimentos percorram grandes distâncias”, analisa.
Após a colheita, há a etapa de escoamento da produção. A ineficiência no transporte da cadeia produtiva ocorre quando, por exemplo, frutas mais perecíveis não vão em containers ou caminhões refrigerados. Embalagens inadequadas e rodovias em má condições também interferem na perda de alimentos. Já na etapa da indústria e do varejo, principalmente o segundo, Porpino destaca a necessidade de uma previsão de demanda de estoque para evitar o excesso de oferta e, consequentemente, reduzir o desperdício. “No varejo também é necessário capacitar o pessoal para organizar melhor os estoques, tendo o desafio de lidar com a alta rotatividade no chão de fábrica do pessoal mais da base da pirâmide do varejo”, acrescenta o pesquisador.
A etapa final é o consumo. Planejar bem as compras no mercado e reaproveitar comida em excesso são exemplos de mudanças comportamentais necessárias à redução do desperdício. “A gente precisa de uma estratégia para mudar a cultura do consumo. É um trabalho de longo prazo para que as pessoas passem a ter atitude mais sustentável”, defende Porpino, enfatizando que o mercado consumidor é bastante diverso em termos de comportamento, por isso a mensagem requer alinhamento com o público-alvo em questão. Algumas pessoas podem se sensibilizar mais com a mensagem ambiental, enquanto outras são impactadas pela questão do dinheiro.
As ações pensadas para a redução efetiva do desperdício precisam envolver também diferentes níveis do governo e do setor produtivo. “O varejo é muito importante por interagir com o produtor rural quando compra frutas e hortaliças. Ele interage com a indústria na compra de leite em pó e molhos, por exemplo. E, obviamente, com o consumidor final todos os dias do ano”. Porpino ressalta que o setor varejista é central para uma mudança que gere impacto do campo à mesa.
A tecnologia é outra aliada no combate ao desperdício. Para os varejistas do segmento de alimentos, a pesquisadora Jacqueline Navarro, vice-presidente da Food Safety Brazil, recomenda a adoção de regras básicas como First in, First out (FIFO) em que o primeiro a entrar é o primeiro a sair, além da organização do estoque para evitar a compra de produtos desnecessários. “Outro ponto é realizar um planejamento contínuo da temperatura do estoque, usando soluções tecnológicas disponíveis no mercado, para garantir a integridade do alimento. E, por último mas não menos importante, é possuir um bom planejamento da cadeia de suprimentos”.
O monitoramento, principalmente dos produtos perecíveis, e o aproveitamento de produtos perto do vencimento são exemplos práticos do uso da tecnologia para reduzir o desperdício de alimentos em supermercados. “Existem soluções no mercado que realizam o monitoramento de refrigeradores e câmaras frias, em tempo real, e podemos fazer o acompanhamento pelo aplicativo ou web. Usando a tecnologia conseguimos evitar, por exemplo, que um freezer ou refrigerador se desligue à noite, evitando assim o descarte desses produtos”, explica a pesquisadora. Entre essas soluções, está a startup carioca SYOS que usa a tecnologia para otimizar o processo de refrigeração na cadeia produtiva de alimentos.
Com o uso de sensores sem fio e inteligência artificial, a SYOS desenvolveu plataforma digital que reduz perdas para os varejistas e garante a qualidade dos alimentos por meio da gestão da cadeia de frio. O monitoramento é feito em tempo real e permite a detecção imediata de variação de temperatura que prejudique a qualidade dos alimentos expostos. Esse alerta possibilita a ação rápida para evitar desperdícios ou mesmo a deterioração dos produtos comercializados. Um dos primeiros clientes da startup criada em 2019 foi uma empresa de refrigerantes, que possibilitou contato maior com a questão da refrigeração e evidenciou ser uma oportunidade de negócio. O cold chain (cadeia de frio) está presente nos alimentos, bebidas e até remédios.
O CEO da empresa, Paulo Lerner, identificou mercado praticamente inexplorado. A maioria dos equipamentos era sem digitalização, tudo manual e analógico. Sem controle, os refrigeradores paravam de funcionar e os funcionários só descobriam quando os produtos estavam estragados. Por outro lado, ele via que a tecnologia, por meio da inteligência artificial, anteciparia os problemas para trabalhar de forma preditiva. “Vimos a oportunidade de desenvolver uma solução específica para esse mercado. Hoje em dia existem várias soluções genéricas que dependem de alguém transformar em algo específico. E o que a gente fez foi pegar essa nova tecnologia e aplicar para o problema do frio.”
Uma boa gestão da cadeia de frio, além de proteger a saúde dos consumidores, evita o desperdício de alimentos. “A nossa sobrevivência no mundo também depende da cadeia de frio. Não é algo pequeno. E a digitalização dessa cadeia vai permitir que a gente faça mais com menos”, defende Lerner, utilizando a tecnologia para ajudar na concretização de metas para mitigar a crise climática.
Jornalista, comunicadora antirracista, moradora da Baixada Fluminense e apaixonada por ouvir e contar histórias. Seja por meio da fotografia, audiovisual ou escrita. Foi estagiária da assessoria de comunicação do Ministério Público Federal no Rio de Janeiro e colaboradora do portal Notícia Preta.