Querida Marina,
Espero que minhas palavras atravessem o universo e carreguem consigo os sentimentos com os quais as escrevo. Há quatro anos, redigi uma coluna intitulada “Poder público deveria ser corresponsável pela morte de Marina Kohler e de tantos outros no trânsito”. Naquele texto, citei dados do Relatório Anual da CET de 2019: 31 ciclistas e 359 pedestres haviam perdido a vida em atropelamentos ou outros sinistros de trânsito. Como era de se esperar, o texto causou certo desconforto institucional.
Peço desculpas, a você e aos leitores, por insistir em questões conceituais, mas acredito que algumas palavras precisam ser mais bem compreendidas para evitar confusões. “Sinistro”, por exemplo, vai além de uma mera descrição técnica, pois carrega em si uma responsabilidade compartilhada por essas tragédias — do motorista que desrespeita as leis e que dirige embriagado, do poder público que falha em garantir infraestrutura de segurança viária adequada às pessoas e de uma sociedade que ainda normaliza a prioridade ao veículo em detrimento da vida humana. O termo nos força a perguntar: a tragédia poderia ter sido evitada?
A resposta, Marina, é clara: sim, poderia. “Sinistro” não é uma fatalidade inevitável. É a soma de escolhas humanas, políticas e estruturais feitas pelos cidadãos, instituições públicas, privadas e empresas. Marina, a verdade é que essa tragédia poderia ter sido evitada. “Sinistro” não é obra do destino, mas é o resultado de escolhas humanas, políticas e estruturais feitas pelos cidadãos, instituições públicas, privadas e empresas e que pessoalmente, considero erradas: a do motorista embriagado, a da omissão na manutenção do veículo, a da falta de fiscalização e de vias seguras para as gentes. Precisamos de semáforos inteligentes, sinalização voltada aos pedestres e ciclistas, cruzamentos seguros e uma mudança real na forma como enxergamos a mobilidade urbana.
É a falta de prioridade que transforma pedestres e ciclistas em obstáculos, a ausência de investimentos em ciclovias seguras e campanhas educativas voltadas aos motoristas. Já ouvi de muitos técnicos municipais, de prefeitos, secretários e de vereadores que essas campanhas “tiram votos e pegam mal” para a imagem deles, políticos eleitos. E enquanto isso, o ser humano, tão frágil diante de veículos que pesam toneladas, permanece vulnerável. Como pode alguém colocar a cabeça no travesseiro e dormir tranquilo com isso? Se não cuidamos das crianças, dos idosos, dos jovens, das pessoas, pergunto-me: o que estas criaturas estão fazendo lá? A quem representam?
A madrugada de 8 de novembro de 2020 não foi apenas o dia em que você foi tirada de seus familiares, amigos e colegas deste mundo e de forma tão brutal; foi o dia em que perdemos uma das vozes mais bonitas e corajosas na luta por cidades mais seguras, voltadas aos cidadãos, pessoas como eu você. Não dá mais para aceitar a negligência que rouba vidas e destrói famílias! Basta!
Os números mais recentes da violência viária reforçam o alerta. Segundo o INFOSIGA, enquanto o total de mortes no trânsito no Estado de São Paulo caiu 7% em 2024, o número de ciclistas mortos em sinistros de trânsito aumentou 17,8% entre janeiro e setembro. Foram 317 vidas perdidas. Cada número representa um universo inteiro e cada uma destas vidas representa todo um mundo de alegrias, sofrimentos, amizades, novidades, amores que não puderam ser completados e que, sim, farão muita falta para suas famílias, amigos e colegas de luta como eu. Enquanto instituições públicas celebram a redução das mortes em geral, ignoram o aumento das tragédias entre os ciclistas, os mais vulneráveis nas ruas. Essa desconexão revela que as estatísticas não contam toda a história. Escolher a bicicleta como meio de transporte como você o fez, é um direito.
Sua pesquisa acadêmica, Marina, “A bicicleta e as mulheres”, apontou corretamente, as complexas relações entre gênero, espaço urbano e mobilidade, abrindo um diálogo importante para os profissionais das ciências urbanas e contribuindo para a formação de novas perspectivas voltadas à formulação de políticas públicas voltadas ao fortalecimento da mobilidade ativa e da de um urbanismo que inclua mais pessoas independentemente de sua idade, gênero, perfil socioeconômico por exemplo. Sua pesquisa expõe a resistência em abandonar práticas ultrapassadas que ainda priorizam o automóvel particular em detrimento de soluções mais humanas e sustentáveis.
Considero, particularmente, que é lamentável o fato de gestores públicos municipais e estaduais ainda tratarem essas mortes como números frios em planilhas. Apesar de avanços tímidos, há uma clara falta de prioridade para proteger vidas de quem opta por modos sustentáveis de transporte. Não se trata apenas de “menos mortos”; trata-se de reconhecer que cada vida perdida é insubstituível.
Enquanto escrevia, lembrei-me de uma frase de “O Talmud” que dizia algo como: “Quem salva uma vida é como se tivesse salvado o mundo inteiro, e quem destrói uma vida é como se tivesse destruído o mundo inteiro”. Cada vida interrompida, cada futuro roubado, representa uma perda irreparável. E cada tragédia que poderia ter sido evitada deveria pesar na consciência de todos que tiveram a chance de agir e escolheram não fazê-lo, seja por negligência, omissão ou conveniência.
Continuarei, quer na sala de aula, nas pesquisas, como cidadã e colunista a lutar pela produção de espaços urbanos onde a vida humana seja respeitada e, nos quais, os modos de locomoção ativa escolhidos pelas pessoas sejam respeitados e parte integrante das políticas públicas. E aos seus pais, deixo meu abraço mais apertado, na tentativa de confortar um luto que não tem nome em qualquer idioma, cultura e religião e cuja dor, a linguagem humana não conseguir expressar. Meus sentimentos.
Saudades,
Helena Degreas