Sou idosa. Sou idosa? O que é ser idosa? Lembrei-me das minhas avós. As duas chamavam-se Ελένη (grego), como não poderia deixar de ser… daí, meu nome. Minha avó paterna, enviuvou jovem, com três filhos para criar, num país dizimado pela guerra e que lhe roubou o marido, companheiro anarquista que, mergulhado na política, morreu por defendendo seus ideais. Vestiu luto fechado aos 36, preto dos pés à cabeça, ao longo de toda a sua vida. Ninguém tirou o hábito. Quando a conheci, o cabelinho era branco, liso e compridíssimo, enrolado em coque, como era de hábito, com uma redinha muito fina prendendo-o e que, vez e outra, deixava um ou outro fio escapar. Essa situação, tirava-a do sério. Xingava todos os deuses e santos. Incluía o marido, com quem ela brigava diariamente aos brados. Sempre tive a certeza de que ele estava lá. Jogava coisas nele. Com raiva por tê-la deixado só.
Na idade que tenho hoje, ela passava o dia crochetando finos e belos fios para fazer minha futura colcha de casal, que até hoje decora meu sofá. Ensinou-me, aos 12 anos de idade, aquilo que, para ela, significava uma forma de me proteger numa Grécia de pessoas “de boca suja”. Aprendi todos os palavrões possíveis e imagináveis. Incluindo as variações. Grande parte delas, atingindo em cheio padres, bispos e santos — gênero masculino, pelo que me lembro hoje. Nenhuma santa. Aparentemente, não guardava ressentimento contra elas. Como conselho de vida, mandou-me estudar, estudar e estudar, pois só assim teria a liberdade de ser alguém, fazer o meu dinheiro (fazer é uma expressão por ela utilizada, como também fazer família) e jamais depender de homem algum no mundo. Segui à risca o conselho. De gente vivida e que te ama de verdade, é melhor ouvir sempre. Certíssima.
Corri para o bom e velho Aurélio, de papel, porque amo impressões, pedindo ajuda.
IDOSO i·do·so adj sm que ou aquele que tem muito anos de vida; velho;
Corri para outro dicionário. Desta vez, em busca de sinônimos que pudessem acrescentar algo inspirador, novo, algo que tivesse algum sentido para mim, mais “alto astral”. Deu ruim, como diriam meus alunos.
IDOSO i·do·so anoso (?!?), antigo, velho, vetusto, senil.
Olhei para o espelho em busca de quem sou. Olhei, na verdade, para dentro de mim. Não me lembro de ter mudado em nada. Os anos passaram e continuarão passando até eu virar uma energia dissipada no universo. Só o corpo já não é tão esbelto, a aparência mais madura e, talvez, meu humor que foi ficando mais corrosivo graças às rasteiras que recebi da vida, como todos os leitores, afinal. Entre a falsidade do sorriso social, que todos em redes sociais AMAM, ando preferindo falar o que penso. Sem muitos filtros, digamos. Obviamente, o cancelamento é meu destino atual.
Hoje, 1º de outubro, celebra-se o Dia Internacional do Idoso, instituído pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 1990 (Resolução 45/106). A coluna trata de uma reflexão sobre o que significa envelhecer em democracias onde as desigualdades sociais e econômicas são visíveis nas paisagens urbanas. Fome, pobreza, desemprego e subempregos — ou “jobs”, termo da moda para trabalhos sem carteira assinada — fazem parte do cotidiano das grandes cidades. Lugar em que aposentadorias mantém a casa de famílias compostas por filhos e netos, num país em que se escolher entre comprar comida ou pagar aluguel é comum. Nesse cenário, envelhecer vai além do processo biológico;
O Brasil, com sua urbanização desigual, é um exemplo de como a experiência de envelhecer varia drasticamente conforme o perfil socioeconômico e cultural. Enquanto em áreas centrais das grandes cidades os idosos podem usufruir de infraestrutura e serviços de saúde mais acessíveis, nas periferias, onde a urbanização precária predomina, a realidade é outra. “Se não estamos crescendo, imagino que estamos amadurecendo”, penso eu. O envelhecimento da população é uma realidade em todo o mundo, portanto, a gestão pública dos espaços urbanos, de seus mobiliários e equipamentos no âmbito das prefeituras, precisa preparar-se para atender às expectativas desse grupo etário.
O processo de urbanização das nossas cidades aconteceu principalmente em resposta às necessidades da população que, buscando um lugar para “fazer família e fazer a vida”, foi ocupando e formando bairros onde era possível: muitas vezes de maneira ilegal e em áreas inadequadas, como várzeas de rios, terrenos íngremes e regiões distantes dos centros urbanos. Quando as legislações mais rígidas, descoladas da realidade da população, começaram a ser aplicadas, as periferias urbanas já estavam consolidadas e habitadas. Esses bairros, muitas vezes irregulares na legislação e na construção, tornaram-se o lar das populações mais vulneráveis, incluindo os idosos de hoje e os que, em 2030, representarão uma parcela ainda maior da sociedade, ultrapassando o número de crianças.
Os números ressaltam a necessidade urgente de adaptação das cidades para garantir um envelhecimento ativo, saudável e independente, garantindo não apenas qualidade de vida, mas também um ônus menor para o sistema de saúde pública.
Ser considerado idoso em regiões metropolitanas tem significados variados, dependendo do perfil socioeconômico, influenciando desde o acesso a serviços até a própria percepção de envelhecimento. Alguns dos problemas que destaco aqui têm o objetivo de alertar os responsáveis pela gestão da vida pública urbana para que tomem as devidas providências e iniciem o processo de “redesenho” dos espaços públicos, adequando-os às necessidades das pessoas. É essencial que gestores públicos planejem as mudanças necessárias para adaptar as cidades nos próximos anos, independentemente de quem estiver à frente da prefeitura, pois essa ação reflete o compromisso com os cidadãos.
O que espero que seja abordado até 2030 pelas futuras prefeitas e prefeitos:
A mobilidade e acessibilidade nas grandes cidades são fundamentais para a vida dos idosos, mas essas condições variam significativamente de acordo com a classe social. Em áreas centrais, a infraestrutura geralmente oferece calçadas acessíveis, rampas e sinalização adequada. Nas periferias, onde reside a maioria da população de baixa renda, a falta de pavimentação, iluminação e transporte adequado restringe a autonomia dos idosos. Embora a gratuidade no transporte público seja assegurada, a superlotação e os itinerários que não alcançam o interior dos bairros evidenciam a falta de acessibilidade, representando desafios contínuos. Em contraste, os idosos de classes mais favorecidas têm acesso a carros particulares ou utilizam aplicativos de transporte, o que reforça as desigualdades urbanas.
A crescente digitalização dos serviços urbanos trouxe novos desafios para a população idosa, especialmente para os de baixa renda. A habilidade de acessar serviços públicos, realizar compras e pagar contas por meio de aplicativos tornou-se fundamental, mas muitos idosos enfrentam barreiras pela falta de dispositivos tecnológicos e alfabetização digital. Esse abismo tecnológico aprofunda as desigualdades sociais, restringindo o acesso a serviços básicos e aumentando a dependência. Programas de inclusão digital e políticas que tornem o uso dessas tecnologias mais simples e acessível são essenciais para melhorar a qualidade de vida e garantir a autonomia e dignidade dos idosos no ambiente urbano atual.
O preconceito de idade, associado a estereótipos negativos, ainda é comum e impacta a qualidade de vida dos idosos nas cidades. Retratar os idosos como frágeis ou ultrapassados reforça sua marginalização, especialmente em sociedades que valorizam a juventude e o ritmo acelerado. Essas percepções afetam tanto o tratamento dado a eles quanto sua autoestima. Estudos indicam que o contato frequente com idosos e a educação sobre o envelhecimento podem reduzir o preconceito, promovendo uma visão mais positiva e inclusiva dessa fase da vida, contribuindo para atitudes sociais mais justas e respeitosas em relação à velhice.
O isolamento social é um desafio para idosos de todas as classes, mas suas causas e impactos variam conforme a realidade socioeconômica. Em áreas mais ricas, a falta de interação comunitária, devido a vizinhanças fechadas e menos atividades sociais, pode intensificar a solidão. Nas periferias, o isolamento é agravado pela insegurança, falta de transporte e ausência de espaços públicos adequados, como praças e calçadas largas. O preconceito etário e os estereótipos que retratam os idosos como “improdutivos” também contribuem para o afastamento social. Combater esse problema requer tanto políticas públicas de incentivo à convivência quanto uma mudança cultural que valorize os idosos.
O ambiente físico das cidades desempenha um papel crucial no envelhecimento, além das questões sociais e de mobilidade. Estudos indicam que espaços verdes, áreas de descanso e ruas acessíveis melhoram significativamente a qualidade de vida dos idosos. Cidades como Londres, Milão e Lisboa investem em espaços públicos que promovem interação social e bem-estar físico, oferecendo áreas seguras para exercício e convivência. No Brasil, essa realidade varia muito: em áreas mais ricas, parques e infraestrutura adequada incentivam a socialização e atividades físicas, enquanto nas periferias a falta de espaços verdes e a precariedade das ruas aumentam o isolamento e a inatividade dos idosos.
O conceito de “envelhecimento ativo”, promovido por cidades como Nova York, envolve a manutenção de uma vida física e mentalmente ativa, com apoio de uma infraestrutura adequada e políticas públicas que incentivem a autonomia. No Brasil, porém, essa realidade é um privilégio para poucos. Idosos de renda mais alta têm acesso a atividades de lazer, esportes e cultura, enquanto os de baixa renda enfrentam trabalho informal, falta de tempo e recursos. Além disso, as condições de moradia e infraestrutura nos bairros periféricos, onde predominam habitações precárias e falta de serviços básicos, tornam o envelhecimento mais difícil, agravando a dependência e problemas de saúde.
As grandes cidades influenciam diretamente a qualidade de vida dos idosos, mas essa influência é marcada por profundas desigualdades. O processo de modernização tecnológica e das infraestruturas públicas não necessariamente melhora as atitudes e comportamentos sociais em relação ao envelhecimento, e o preconceito de idade ainda é uma barreira significativa para a inclusão de uma proporção cada vez maior de idosos na vida urbana. Para enfrentar esses desafios, é necessário um planejamento urbano inclusivo e políticas públicas que promovam a dignidade, a autonomia e a participação ativa em todas as esferas da sociedade. Somente assim será possível garantir que todos, independentemente do perfil socioeconômico, possam envelhecer de forma digna e integrada ao ambiente urbano.
Minha avó, minha mãe, eu e minha filha temos em comum não apenas a genética. Trazemos conosco histórias de vida que nos permitiram avançar na vida de maneira única, cada uma em seu tempo, com desafios diferentes. Minha avó, presa ao luto, à tradição e ao trabalho manual; minha mãe, mesclando os papéis de dona de casa e comerciante, equilibrando mundos; eu, rompendo barreiras e lutando por independência e liberdade; e minha filha, que vivendo em um mundo ainda mais veloz, digital, construirá um mundo inteiro, espero, com menos preconceitos. Percorrer a vida é, portanto, muito mais do que apenas acumular anos. É carregar consigo histórias, vivências, resiliências e transformações.
O que é ser idosa? Talvez seja encontrar o equilíbrio entre as batalhas que enfrentamos, a reflexão sobre quem somos e a busca eterna por sentimentos de serenidade que a experiência nos traz.