A Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) interditou um lote de imunoglobulina avaliado em cerca de R$ 30 milhões comprado pelo Ministério da Saúde para abastecer o SUS (Sistema Único de Saúde).
A agência afirma que cerca de 30 mil frascos do medicamento, feito à base de plasma sanguíneo, chegaram ao Brasil sem o equipamento usado para monitorar a variação de temperatura durante o transporte.
O ministério não pagou pelo lote e diz que os atuais estoques de imunoglobulina são satisfatórios. “O abastecimento do SUS com produtos cuja qualidade foi atestada e a assistência aos pacientes que dependem do tratamento não serão interrompidos em decorrência do processo”, afirma a pasta em nota.
A área técnica da agência mandou destruir cerca de metade do lote após fiscalizações feitas na quarta-feira (18) e na quinta-feira (19). O resto da carga deve ser devolvido.
A interdição pode ser revertida se a agência aceitar um recurso administrativo ou por eventual decisão da Justiça.
O ministério firmou contratos de cerca de R$ 370 milhões, em abril, para compra de imunoglobulina com duas empresas que não têm produtos certificados pela Anvisa. A pasta argumenta que fez compras emergenciais após tentativas frustradas de contratação de produtos validados pela agência, decisões do TCU (Tribunal de Contas da União) e para evitar o desabastecimento.
O medicamento é considerado estratégico para o SUS, pois pode ser usado no tratamento de diversas doenças, entre elas a Aids e outras imunodeficiências.
O lote interditado é a primeira entrega feita, com atraso, pela Prime Pharma LLC, dos Emirados Árabes, que é representada no Brasil pela empresa Farma Medical, de Manaus.
As empresas assinaram um contrato de R$ 87,6 milhões para distribuir 90 mil frascos. Os medicamentos foram fabricados pelo laboratório chinês Harbin Pacific.
A Farma Medical negou irregularidades e disse que os medicamentos foram transportados em cadeia de frio, com “controle de temperatura assegurado contratualmente e pelos equipamentos container refrigerado utilizados pela companhia [aérea]”.
A empresa disse que vai recorrer e, se for preciso, acionar a Justiça para reverter a interdição.
A Farma Medical também declarou que a mercadoria chegou ao Brasil na temperatura correta e pode ficar até 3 meses fora da refrigeração.
“Os procedimentos de envio adotados pelo fabricante estão de acordo com os padrões internacionais de transportes e assegurados por contrato e monitoramento efetuado pela companhia aérea que é especializada neste tipo de transporte”, disse a empresa.
A Farma Medical já fez vendas menores de imunogobulina ao SUS. Recebeu cerca de R$ 4,5 milhões para entregas a hospitais das Forças Armadas e de universidades em 2022 e 2023.
O Ministério da Saúde afirma que cobrou explicações e notificou a empresa. Este é um primeiro passo para eventual abertura de processo administrativo para apurar se houve irregularidade no serviço da Prime Pharma e da Farma Medical.
“As justificativas e documentos entregues pela empresa foram protocolados pela pasta junto à Anvisa. Cabe ressaltar que não houve repasse de recursos para a empresa”, afirma a Saúde.
No “termo de interdição” de 16,2 mil frascos, o fiscal da Anvisa afirma que “a destruição do produto foi motivada pela ausência de monitoramento de temperatura do produto biológico, e impossibilidade em atestar sua segurança e eficácia”. O documento dá 30 dias para a empresa contratada incinerar o produto.
As regras da Anvisa determinam que medicamentos termolábeis, sensíveis a variações de temperatura, devem ser armazenados e transportados com cautela. No caso da imunoglobulina, a faixa aceitável de temperatura fica entre cerca de 4 e 6 graus.
A agência ainda cobra o monitoramento do produto durante todo o transporte. Por isso, empresas costumam usar um equipamento conhecido como “data logger”, que registra as mudanças.
O aparelho é uma espécie de termômetro com memória para armazenar as variações medidas. Ele pode ficar acoplado às caixas dos medicamentos, e os dados podem ser lidos após a entrega.
Guilherme Favetti, advogado da Farma Medical, disse que “não existe disposição expressa de exigência de data logger”. “O acondicionamento do medicamento foi rigorosamente monitorado na cadeia de refrigeração. Não houve qualquer irregularidade”, afirmou.
A Saúde pediu explicações da empresa sobre a falta do equipamento no último dia 16, citando resolução da Anvisa que exige apresentação de “registros contínuos de temperatura” durante o transporte.
Integrantes da Saúde que acompanharam o caso afirmam, sob reserva, que a pasta não deve insistir na liberação da carga, pois não há risco de desabastecimento.
Pelo menos desde 2018 o governo federal acumula compras frustradas e disputas na Justiça e no TCU por causa da imunoglobulina.
Nos últimos anos, a pasta fechou contratos de mais de R$ 300 milhões por medicamentos não registrados pela Anvisa, feitos com o plasma estrangeiro. Os produtos, porém, são certificados por agências de outros países.
Embora esse procedimento não seja novo, associações de pacientes e médicos temem receber medicamentos desconhecidos e de baixa qualidade. A discussão sobre a aquisição de remédios sem registro no Brasil opõe o governo e a indústria nacional, que afirma ser prejudicada ao disputar os contratos com importadoras que não tiveram de submeter o produto ao crivo da agência sanitária.
A dificuldade para abastecer o SUS é um dos argumentos citados por defensores PEC (proposta de emenda à Constituição) que permite a comercialização do plasma sanguíneo, aprovada em comissão do Senado no começo de outubro.
O Ministério da Saúde se opõe ao texto. Além de apontar risco sanitário, a pasta afirma que a fábrica da estatal Hemobrás, localizada em Goiana (PE), deve ficar pronta em 2025. Esta unidade deve permitir fracionar o plasma coletado no Brasil, que hoje é enviado ao exterior para produzir medicamentos ao SUS.