Um dos capítulos mais cruéis do ataque de garimpeiros ao povo Yanomami, em Roraima, segue sem solução. Depois da denúncia da morte de uma adolescente de 12 anos, vítima de estupro cometido por garimpeiros, 24 indígenas da comunidade Aracaçá permanecem desaparecidos e suas casas foram encontradas queimadas.
A elucidação do caso esbarra no clima de tensão e medo imposto por garimpeiros, que teriam comprado o silêncio das vítimas com ouro. Sem uma base de proteção permanente da Funai, o garimpo se mantém como o principal indutor da violência na região.
A denúncia do estupro seguido de morte foi feita pelo presidente do Conselho Distrital de Saúde Indígena Yanomami e Ye’kwana (Condisi-YY), Júnior Hekurari Yanomami. Segundo ele, outra mulher havia sido sequestrada e teve o filho de três anos jogado em um rio.
Corpo carbonizado e ‘falta de indícios‘
O Condisi-YY encaminhou um pedido de investigação a Polícia Federal, ao Ministério Público Federal (MPF), à Funai e ao Ministério da Saúde. Junto com Hekurari, uma força tarefa composta por esses órgãos foi até a comunidade Aracaçá e encontrou os restos das casas incendiadas.
As autoridades logo concluíram que “não foram encontrados indícios da prática dos crimes de homicídio e estupro ou de óbito por afogamento”, conforme nota da Funai e Polícia Federal. Mesmo assim, afirmaram que vão continuar as investigações.
O Ministério Público Federal (MPF) também comunicou que a apuração segue em andamento. “Mais informações apenas serão divulgadas quando da conclusão dos trabalhos. A partir do término da investigação, o MPF analisará as medidas cabíveis”, escreveu o órgão.
Júnior Yanomami afirma que a explicação para a falta de “indícios” pode estar na prática de rituais de cremação pelos Yanomami. “No segundo dia [de investigação], retornamos às comunidades e percebemos que existe a marcação de queimação de um corpo, possivelmente adolescente”, disse.
Ele atesta que o incêndio às casas também faz parte dos rituais. Disse ainda ter mostrado imagens da comunidade incendiada a lideranças Yanomami. Eles “relataram, conforme costume e tradições, que após morte de um ente querido a comunidade em que residia é queimada e todos evacuam para outro local”, escreveu Júnior.
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Ouro em troca do silêncio
Segundo o presidente do Condisi-YY, o clima de terror imposto pelos garimpeiros também dificulta as investigações. “Percebi que as comunidades estavam com muito medo. Percebemos que os Yanomami foram bem orientados pelos garimpeiros para não relatar essa morte da adolescente”, declarou em vídeo enviado ao Brasil de Fato.
A nota do Condisi-YY detalha ainda o grau de cooptação a que as populações estão submetidas. Após pousarem na comunidade Aracaçá – queimada e abandonada – os integrantes da força tarefa demoraram 40 minutos para avistarem os primeiros indígenas.
O grupo teria voltado ao local apenas para resgatar materiais deixados por garimpeiros. Eles se recusaram a cooperar com a investigação. “Após insistência, alguns indígenas relataram que não poderiam falar, pois teriam recebido 5 gramas de ouro dos garimpeiros para manter o silêncio”, afirma o documento.
O Condisi-YY concluiu que “esses indígenas foram coagidos e instruídos a não relatar qualquer ocorrência que tenha acontecido na região, dificultando a investigação da Polícia Federal e Ministério Público Federal que acabaram relatando não haver qualquer indício de estupro ou desaparecimento de criança”.
Lideranças apontam omissão da Funai
A Hutukara Associação Yanomami afirmou que está acompanhando o caso e buscando mais informações junto às comunidades. A entidade ressalta que o episódio mais recente de violência contra os indígenas não é um caso isolado.
A comunidade de Aracaçá fica na região de Waikás, próximo ao rio Uraricoera, uma das áreas mais devastadas pelo garimpo ilegal, que vem provocando uma tragédia social junto aos Yanomami. O relatório “Yanomami Sob Ataque”, produzido pela Hutukara, aponta que a Aracaçá está “em vias de desaparecimento” por causa da desagregação social provocada pela atividade.
Além da introdução de bebidas alcoólicas pelos garimpeiros e do acirramento de conflitos internos, o relatório aponta que indígenas “deixaram de abrir roças e hoje dependem da alimentação oferecida pelos garimpeiros em troca de serviços, como carregar combustível e realizar pequenos fretes de canoa”.
A comunidade de Aracaçá está próxima à região do Palimiu, alvo de seguidos ataques de garimpeiros armados no ano passado. Os episódios provocaram a morte de uma criança que tentava se proteger dos invasores.
“Mesmo com toda a violência, a Base de Proteção Etnoambiental (Bape) da Funai, que deveria proteger o acesso ao rio Uraricoera, ainda não foi reativada, e o garimpo continua atuando livremente”, escreveu a Hutukara.
Os órgãos que deveriam garantir a segurança e o bem estar dos indígenas também são alvos de críticas do presidente do Condisi-YY.
“O governo diz que está gastando mais de R$ 1 bilhão na saúde indígena. A gente não está vendo esse dinheiro na assistência na ponta, nas comunidades. Principalmente na saúde Yanomami, falaram que 210 milhões de reais foram gastos durante dois anos, mas não vemos esse dinheiro”, afirmou Junior Yanomami ao programa Central do Brasil.
Por Murilo Pajolla | Brasil de Fato | Lábrea (AM)