SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Uma drag queen vestida de freira segurando um terço que sangrava e deixava um rastro vermelho numa passarela em forma de cruz marcou a estreia de Alexandre Herchcovitch na moda. Depois da entrada triunfal de Márcia Pantera no desfile de formatura do estilista, em 1993, as modelos apareceram carregando cabeças de bonecas das quais também pingava um líquido tipo sangue.

Daquele desfile, até hoje comentado nas rodinhas da moda, dois vestidos inspirados nas camisas de força usadas para conter pacientes em hospício estão em exposição no Museu Judaico. A partir deste sábado, a instituição paulistana abriga uma mostra abrangente do trabalho de Herchcovitch, nome central da moda brasileira e presença obrigatória nos guarda roupas mais antenados.

Num ambiente de carpetes estampados com correntes —motivo recorrente na iconografia do estilista—, vemos roupas, acessórios e sapatos dos mais de 30 anos da marca que leva seu nome, a exemplo de uma blusa de miçangas coloridas que formam lâminas de barbear e de um sutiã com argolas de metal concêntricas nos seios, um aceno ao universo do sadomasoquismo.

O imaginário pesado que serve de referência para a sua confecção contrasta com a leveza de Herchcovitch ao conversar com a reportagem, enquanto caminha entre as roupas, exibidas no museu em cabides pendendo do teto. Ele destaca um vestido preto curto que fez para a sua mãe em 1985, aos 14 anos, o modelo mais antigo em exposição, pelo fato de a peça ter sido preservada por tantas décadas.

Um dos destaques da mostra é um conjunto de looks inspirados nas vestimentas de judeus ortodoxos, exibidos na sinagoga do museu. As peças são uma reedição de roupas iguais desfiladas em 2012, a única vez em que o estilista se baseou diretamente na religião judaica para criar, e incluem aparatos usados em cerimônias litúrgicas, como chales, e acessórios de couro para os braços.

“Os judeus religiosos se vestem basicamente de alfaiataria preta, o guarda roupas é bastante restrito, não tem muita variação. Eles não querem chamar muita atenção”, diz Herchcovitch, acrescentando que não segue a religião de seus antepassados nem qualquer outra. “Hoje se você fala ‘você é judeu’, eu falo ‘eu nasci numa família judia’. Eu não pratico nada.”

Em relação ao conflito de Israel contra o Hamas em andamento, o designer diz que qualquer guerra o afeta, “porque eu não acho que esse é o caminho”. “Eu sou um pacifista.”

Quem acompanha a carreira do estilista de 52 anos já viu o símbolo judeu da estrela de Davi estampado em suas camisetas, como na coleção desfilada no final de 2022, ou seu sobrenome estilizado de modo a lembrar o alfabeto hebraico, também impresso em camisetas.

Ou seja, o judaísmo se manifesta esporadicamente em sua moda, de maneira pop, embora não seja uma marca. A produção do designer é muito influenciada pelos clubes da cena eletrônica de São Paulo dos anos 1990, nos quais o estilista desfilou suas roupas, e pela sua família —ele aprendeu a costurar com a mãe, Regina.

Visitar a exposição é ver de perto um pedaço importante da moda brasileira, entender um pouco como cria um estilista que vai com naturalidade das camisetas oversized do streetwear aos vestidos de festa, passando por cartolas e bolsas de couro em forma de Hello Kitty.

Mas a ideia não era mostrar só as roupas, e sim o criador Herchcovitch de maneira geral, afirma Maurício Ianês, o organizador da exposição. Monitores exibem vídeos de quase todos os desfiles do estilista, e a música ambiente é a trilha sonora das apresentações, às vezes bastante perturbadora.

As paredes do espaço expositivo foram adesivadas com imagens das campanhas publicitárias e de uma foto do próprio estilista dentro de um caixão, como se estivesse morto, um célebre retrato que ele encenou para uma revista na década de 1990.

Há também curiosidades para os fãs da marca, como convites de desfiles com retratos de colégio do pai e da mãe de Herchcovitch e um outro de Bilhete Único, o cartão usado no transporte público de São Paulo, que chamava os convidados para a apresentação da coleção feminina do inverno de 2016.

A memorabilia inclui ainda o primeiro desenho de caveira feito pelo estilista, nos anos 1980, imagem que é sinônimo de sua marca até hoje, estampada em bolsas, camisetas, moletons e meias.

Numa época em que o Brasil estava mais isolado do mundo, ele desfilou em Nova York, Londres e Paris e teve uma loja em Tóquio, levando para fora suas roupas que, de fato, poderiam estar nas ruas de qualquer metrópole do mundo.

Herchcovitch também conectou sua moda aos personagens da noite, à música eletrônica, ao rock e até à entidade religiosa da Pombagira, fazendo de seu trabalho um comentário da cultura jovem da virada de século, não só uma série de logotipos desejáveis para vestir.

Ele entrou para a história porque suas atitudes de décadas passadas são bastante atuais, segundo o organizador da mostra. “O Alexandre sempre trabalhou de forma muito forte a transgressão dos códigos de gênero, não só por ter trabalhado com a Márcia Pantera e vestido drags, mas também por colocar na passarela pessoas trans”, diz Ianês. “Isso lá nos anos 1990.”

ALEXANDRE HERCHCOVITCH: 30 ANOS ALÉM DA MODA

– Quando De 20 de abril até 8 de setembro. Visitação ter., qua., sex., sáb. e dom., das 10h às 18h e qui., das 13h às 21h

– Onde Museu Judaico – r. Martinho Prato, 128

– Preço R$ 20; grátis aos sábados