Em pronunciamento de cerca de uma hora transmitido nacionalmente, o presidente da Rússia, Vladimir Putin, anunciou nesta segunda-feira (21) que vai reconhecer a independência das autoproclamadas repúblicas de Luhansk e Donetsk, no Leste da Ucrânia, onde separatistas pró-Moscou controlam boa parte do território desde 2014 e travam uma guerra que deixou cerca de 15 mil mortos.
Pouco depois, em decreto, Putin determinou o envio de uma “missão de paz” aos dois territórios. De acordo com a agência RIA, o presidente instrui as Forças Armadas da Rússia a “garantir a paz” nas regiões controladas pelos separatistas. Não foram divulgados detalhes sobre como ocorrerá essa operação, que equivale na prática a uma invasão do território do país vizinho.
A decisão de reconhecer as duas repúblicas separatistas foi anunciada por Putin em um discurso marcado por referências históricas e ataques ao governo ucraniano e ao Ocidente, depois de uma reunião não programada e também televisionada do seu Conselho de Segurança Nacional. Na reunião, os outros 12 integrantes do Conselho defenderam o reconhecimento da independência.
— Creio ser necessário tomar uma decisão que deveria ter sido tomada há muito tempo: reconhecer, imediatamente, a independência e a soberania da República Popular de Donetsk e da Republica Popular de Luhansk — afirmou Putin.
O decreto de reconhecimento e de estabelecimento de cooperação com as duas regiões, firmado por Putin após o discurso, atende a um pedido das lideranças separatistas — respaldado pela Duma, a Câmara Baixa do Parlamento russo—, que apontam violação de acordos internacionais e afirmam que a população da área é alvo de ataques das forças ucranianas. Kiev, porém, nega as acusações.
No pronunciamento, Putin apontou que a Ucrânia é uma “parte integral” da História russa, afirmando que a “Ucrânia moderna” foi criada pela União Soviética, um processo que, em sua opinião, foi “um erro” e que prejudicou a Rússia.
— Como resultado da política bolchevique, a Ucrânia soviética surgiu, e hoje há uma boa razão para que seja chamada de “Ucrânia de Vladimir Ilyich Lenin”. Ele é seu autor e arquiteto — afirmou Putin.
Para ele, as autoridades ucranianas foram “contaminadas pelo vírus do nacionalismo e da corrupção” e passaram a ser comandadas por forças estrangeiras, em especial depois do chamado Euromaidan, a revolta popular que pôs fim, em 2014, ao governo de Viktor Yanukovich, aliado do Kremlin.
O movimento também serviu de pretexto para o conflito no Leste ucraniano, com o apoio de Moscou aos separatistas, e está relacionado à anexação da Península da Crimeia, que havia sido cedida à Ucrânia na era soviética, naquele mesmo ano.
Regiões de Donetsk e Luhansk e áreas sob controle de separatistas
Ao abordar a situação na região de Donbass, onde ficam as duas regiões separatistas, Putin acusou as autoridades de Kiev de tentarem banir o idioma russo através de leis que privilegiam o uso do ucraniano e de reprimir a Igreja Ortodoxa russa. Ele atacou o que chamou de “fluxo de armamentos” enviados à Ucrânia, criticou a presença de militares estrangeiros, em especial da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) no país, e acusou o governo de Kiev de buscar obter armas nucleares.
Putin se referiu a um susposto desejo de Kiev de violar o chamado Memorando de Budapeste, de 1994, pelo qual as ex-repúblicas soviéticas da Ucrânia, da Bielorrússia e do Cazaquistão concordaram em entregar os arsenais nucleares soviéticos ao controle russo em troca de garantias de segurança por parte de Moscou. Indo além, afirmou que a Ucrânia poderia ser usada como plataforma para um ataque futuro da Otan contra a Rússia.
— Se a Ucrânia se juntasse à Otan, ela serviria como uma ameaça direta à segurança da Rússia — afirmou.
Segundo o Kremlin, a decisão foi informada aos líderes da Alemanha, Olaf Scholz, e da França, Emmanuel Macron, que ficaram “consternados” ao final das conversas com o presidente russo. Logo depois do anúncio, as TVs russas mostraram comemoração em áreas de Donetsk e Luhansk.
No começo da reunião do Conselho de Segurança, Putin disse que “o destino da Ucrânia se decide hoje”. Em seguida, afirmou que era necessário considerar os apelos dos representantes de Donetsk e Luhansk, acrescentando que um reconhecimento da independência não significaria a anexação das regiões à Rússia.
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Tensão nas fronteiras
Mais cedo, forças de segurança da Rússia afirmaram que militares e guardas de fronteira impediram “um grupo de reconhecimento e diversionismo” de violar a fronteira do país a partir do território ucraniano e que cinco pessoas foram mortas para impedir a incursão. “Nos combates, cinco pessoas de um grupo de sabotadores violaram a fronteira russa e foram mortas”, disse um comunicado.
A Ucrânia negou o informe, classificando-o como “fake news”, e disse que nenhuma força ucraniana esteve presente na região russa de Rostov, onde o incidente teria ocorrido.
Horas antes da reunião do Conselho de Segurança russo, os líderes das duas regiões separatistas foram à televisão pedir a Putin para reconhecê-las como independentes.
Todas as ações do lado russo se encaixam em um padrão previsto por governos ocidentais, que acusam a Rússia de se preparar para fabricar um pretexto para invadir a Ucrânia, culpando Kiev pelos ataques e contando com pedidos de ajuda de representantes separatistas.
O reconhecimento da independência das regiões constitui o fim dos Acordos de Minsk, negociados em 2015 com mediação da Alemanha e da França. Os acordos previam um cessar-fogo nas duas regiões, que receberiam autonomia administrativa. O acordo era considerado o quadro de referência para quaisquer futuras negociações sobre a crise no Leste ucraniano.
Reunião consensual
Na reunião do Conselho de Segurança russo, o vice-presidente do organismo, o ex-presidente e ex-primeiro-ministro Dmitry Medvedev, foi o primeiro a pedir explicitamente o reconhecimento da independências das regiões separatistas. Medvedev afirmou que as pessoas nas duas regiões “não são apenas falantes de russo, e sim cidadãos russos”.
Nos últimos anos, a Rússia reconheceu a cidadania de grande parte da população das duas regiões, oferecendo-lhes passaportes russos.
— Estes são o nosso povo. Quando cidadãos americanos estão em apuros, os americanos conduzem operações especiais — afirmou Medvedev. — Se as coisas continuarem assim, o único jeito será reconhecer a independência.
O ministro da Defesa, Sergei Shoigu, foi na mesma linha:
— Quero ser claro: devemos reconhecer a independência das duas regiões separatistas do Leste da Ucrânia.
Em certo momento, Putin perguntou se alguém tinha alguma opinião divergente, ao que se seguiu um profundo silêncio. A certa altura, ele zombou de seu chefe de Inteligência estrangeira, que parecia falar sem convicção suficiente:
— Você está sugerindo que abramos um processo de negociação? — disse Putin com desdém. — Fale direito.
Depois de gaguejar, a autoridade afirmou que apoiava a independência.
Houve algumas sugestões, como “dar dois dias a Biden”. Essa opção foi descartada pelo próprio Putin e por seu ministro das Relações Exteriores, Sergei Lavrov.
— Sobre a ideia de dar ao Ocidente alguns dias para pensar sobre isso, é uma questão de gosto, mas é claro que não vai mudar nada — afirmou Lavrov.